quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Sempre, enfim, para o austro a aguda proa...


ALEPH

Foi um entardecer de poderosa magia. Enquanto a Terra caía na dormência que antecede a noite e o sono, no céu as nuvens reuniam-se em grupos, entregues à sua dança ritual; pequenos flocos convergiam e acastelavam-se, ganhando porte e altura, e seguiam juntos algum tempo, parecendo a sua substância adquirir uma natureza ebúrnea, imponente - um pouco escurecida em baixo, como a rocha milenar. Mas ao invés de se vestirem de algas e bolor, de desafiarem o escopro demolidor do Tempo, aquelas etéreas montanhas não tardavam muito a dissolver-se no crepúsculo vespertino, pois eram feitas da própria matéria que corrói a pedra mais rija; formavam delgadas cobertas de alguma extensão, difusas, sobrepondo-se umas às outras como patamares de um palácio celeste, suportados por pilares de massa nebulosa mais resistente.

Se bem que os Deuses não habitem as nuvens - morada efémera para a sua existência intemporal - podia facilmente imaginá-las como residência de férias de todo o Panteão, quando este decidisse aproximar-se das terras mortais, e entregar-se ao prazer lúdico de sacudir da letargia o espírito dos Homens. Breves são estas incursões da Grande Família - e durante essa brevidade, as almas desprevenidas são arrastadas para momentos de prosternação, perante a grandiosidade da Natureza moldada em formas que elevam o espírito além da dimensão de subjectividade em que cada indivíduo vive encarcerado, assim que se liberta da dependência e do aconchego do ventre materno. São momentos de assombro, temor e euforia; vingam-se os Deuses do materialismo ingrato, fabricando com as percepções em que o ser humano tanto confia, emoções que o transcendem e o mergulham na angústia de ser ignorante.

Mas raramente estas incursões deixam marcas. Poucos estão dispostos a receber a Loucura no seu espírito, fugindo à imensidão esmagadora das planícies nebulosas dos visionários, refugiando-se nas praças-fortes de normas e convenções que criam em torno de si. Tal é a natureza das dádivas divinas: aos Homens é dada a faculdade de as rejeitar alegremente, mas não sem incorrer na ira dos Deuses repudiados...

Na quase totalidade das ocasiões, a recusa é inocente, fruto da insensatez própria de todas as criaturas rudes. Então, Eles fazem-lhes a vontade, como por vingança, e subtraem-nos da plenitude da contemplação das coisas que ultrapassam o alcance da razão e do bom senso, das emoções que tal contemplação desperta, dos sentimentos que alimenta; e abandonam-nos no vazio opressivo da consciência. Nada pode haver de mais doloroso do que a perda de um arrebatamento, o apagar de uma chama, de uma fornalha, e o subsequente desmoronar de todo o Ser, como um vulcão extinto que entra em colapso, ruindo sobre si mesmo e afundando-se num oceano interior de lágrimas que nunca chegarão a ser derramadas...

E pode haver coisa mais triste do que esta lúgubre situação em que as forças que nos dão vida se equilibram numa conformação racional, acalmadas as tensões, satisfeitas as vontades, saciados os apetites, como uma pilha electrolítica que, atingido o seu ponto de entropia máxima, diluído o seu potencial numa monotonia uniforme de electrões - livres, mas sem brio - já não pode mover motores, acender luzes, provocar descargas e curto-circuitos, vendo-se transformada num objecto sem qualquer utilidade ou valor aparentes, que lhe eram a própria razão de existir?

Também a Alma, para ser, precisa de conflito, de instabilidade, de Forças que se contrariem, gerando movimento e atritos, terreno fértil para a imaginação criadora. E isto acontece quando a sua energia encontra um foco que a seduz, conquista e aprisiona, gerando-se uma batalha interior entre a tendência para permanecer no limbo da ruminação despreocupada, purgatório da bem-vivência mundana, e o fascínio exercido pelo chamamento à batalha, em nome do Amor, do Bem, da Verdade, de um Ideal ou de uma Causa, melhor se for perdida, que tanto mais apelo nos faz quanto mais distante estiver o seu Fim...

Assim munida, pode enfrentar a Vida com a segurança de que, no fim, surgirá inteira, invicta, impoluta, insatisfeita e inconformada; se outras vitórias não poderem ser reclamadas, esta será sua de pleno mérito, por ter acreditado. Mas não será também preciso que a entrega seja constante? Que a Fé não esmoreça nunca, que o Amor seja eterno, como o cadinho de um alquimista? Quando a Alma é grande, como uma corrente tumultuosa, pode ser difícil contê-la entre duas margens, e então ela transborda, sempre que encontre condições para isso. Guardá-la é uma tarefa pesada, mesmo quando a vontade é forte, pois é preciso conhecê-la, saber-lhe as manhas todas e os caprichos, encontrar-lhe os pontos fracos.

Ao olhar para a minha, parece-me ter pela frente um cemitério. Um lodaçal de projectos, sonhos e amores em decomposição lenta, polvilhado de pequenas velazinhas azuis e brancas, cada uma memória de uma chama viva que outrora crepitou nas minhas entranhas, e agora flutua, decrépita, no oceano interior das lágrimas. Ainda que as juntasse todas - e são muitas! - a sua chama fria não chegaria para me aquecer como uma fogueira de carvões em brasa.

Eis o destino de todos aqueles cuja Alma tem seca e monção, correndo como uma enxurrada em tempo de chuva, para depressa se perder no pó quando esta cessa de a alimentar, esgotando em menos de nada a substância que manteria por muito tempo a corrente em espíritos mais precavidos. É a Verdade do Universo, a mesma Lei que dita que as estrelas maiores e mais quentes tenham uma vida mais curta do que as suas irmãs mais moderadas, perecendo em monumentais explosões, de que sobra um resíduo branco de cinismo e acomodação, ou um vazio negro de loucura… No meu charco privado, posso antever uma constelação de velazinhas brancas capaz de tornar pequeno o firmamento das estrelas da noite… Ou a escuridão, quando todas elas se apagarem.

Talvez aí mesmo, na infinidade do céu nocturno, esteja o Ponto, tão infinitamente afastado, que todas as linhas radiais que dele partem sejam paralelas, reduzindo a nada a distância entre os bocados dispersos da minha alma, reunificada pela imensidão esmagadora do cosmos. Afinal, a decomposição lenta nos pântanos liberta gases instáveis; quando a dimensão de um indivíduo for demasiado pequena para os isolar do exterior, a combustão será espontânea…

27-09-97

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

preso no tempo


Desci ao Inferno e conheci o verdadeiro Deus: o Tempo, duro, cruel e frio; no calor insuportável da vida dos condenados, o Senhor inabalável. A existência mais não é do que adorá-lo; opormo-nos-lhe é inútil. Ele é vivo depois da morte, foi o primeiro a chegar e será certamente o último a partir, quando mais nada restar para sentir o flagelo da Sua passagem.

Tento arrancá-Lo da minha consciência, onde se instalou como um parasita, refastelando-se na minha inércia, excretando desespero, exortando‑me à loucura.

Estranhei logo aquela nova sensação de tristeza passiva, efeito sem causa que podia sentir, sem contudo poder compreender. O disco rubro do Sol poente afundava-se nas nuvens lilases, os seus últimos raios corriam sobre os telhados, fintavam as árvores mais altas, coloriam pela derradeira vez a crista das ondas rasas de onde o Tejo vem provar o sal do Oceano; levavam consigo a luz e o calor possíveis num curto dia de Dezembro, e deixavam Nada para trás...

Sobressaltei-me ao dar por esse pensamento, que mente alheia viera cravar na minha; pela primeira vez, não consegui sentir as trevas amigas do sono e do esquecimento, que sempre ocupavam, sorrateiras, as posições cedidas pelo tirano ardente, e me embalavam durante aquelas horas da noite, em que o fluir da vida se atrasava em meandros de pessoas, ideias e lugares que não me podiam magoar, por não serem feitos daquilo que é.

Perdido nestes prados tristes da minha alma doente, demorei a pousar de novo no meu telhado, e apenas para ver o orgulhoso Arqueiro, de farda enfeitada com as jóias mais preciosas que o firmamento contém, dissolver-se no breu das nuvens de tempestade, que tinham galgado os céus anilados do ocaso, e escorregavam já pelo lado mais negro, roubando-me a noite amiga.

Escorrendo pela janela para o sótão, deixei que o meu corpo se entornasse para dentro dos lençóis, e tentei dormir. Mas, dessa vez, não havia paz para mim, nem repouso, nem esquecimento. Acordei vezes sem conta; regressava sozinho e vazio do reino dos sonhos, habitualmente tão relutante em me deixar partir. Certa vez, senti que todo eu gelava, ao ser assaltado por mais um pensamento medonho: soube que os sonhos mais não eram do que um embuste, criado pelo Tempo diabólico, para nos fazer esquecer a sua corrida implacável, que nos arrasta a todos para um fim sempre mais próximo...

Os dias que se seguiram foram de grande sofrimento. As coisas deixaram, simplesmente, de acontecer, debaixo do céu carrancudo de tempestade. Dava comigo passeando pela casa, visitando repetidamente as mesmas salas, sentando-me ocasionalmente nas mesmas cadeiras, lendo as mesmas páginas do jornal, descrevendo nas minhas deambulações alucinadas um padrão de crescente ansiedade e tensão. Esperava que algo acontecesse, mas não sabia o quê...

Esperava com aquela Esperança absurda, de quem relê uma história conhecida, e torce fervorosamente para que certa passagem desagradável não se verifique. E nos intervalos do meu esperar, ia olhando para os relógios, dando-me conta de que o Tempo continuava a correr, mais lesto ainda, se possível, agora que tudo o mais parava sobre a Terra.

Certo dia passei a porta da rua, e quedei-me à beira d'água, enchendo os sentidos da presença do rio, tentando esquecer o cheiro bafiento e monótono das paredes que, imóveis, assistiram ao crescer da minha ansiedade. O Tejo, como o Tempo, não parava nunca, e nunca as mesmas aguas vinham lamber-me os pés dormentes.

Nessa mesma tarde, começou a chover.

Dezembro de 1996

Reencontro

A estrada seguia a linha de cumeada, oferecendo uma magnífica perspectiva da paisagem circundante, intensificada pelo sol de Primavera: as encostas mais brandas do sopé da montanha, polidas pelo tempo e revestidas por escassa vegetação rasteira, alternavam com vales mais abrigados, onde algum arvoredo encontrara refúgio do calor da estiagem e do hálito salgado do oceano, cujo labor persistente talhara as arribas que rematavam o continente; aí, o relevo ondulado rendia o lugar ao escarpado, precipitando-se a rocha nas águas demolidoras em sucessivos promontórios e enseadas. Mas porque o poder destruidor das águas está intimamente associado ao seu poder criador e rejuvenescedor, nestas últimas nasciam praias de areia branca e fina, que no dorso do vento galgavam as paredes e se acumulavam aos pés da montanha, marcando em dunas vigilantes posição fortificada sobre a pedra dura, espreitando a primeira oportunidade de lançar o ataque sobre o pinhal que se opunha ao seu avanço.

E para lá do pinhal, a civilização: as vilas, os bairros, as antigas aldeias, hoje meros aglomerados de casas onde apenas se passava de um dia para o outro. Mais longe, a cidade perdia-se no horizonte, cuja demarcação era interrompida pelo contorno ténue de outra montanha, ainda mais remota; pelo meio a barra do rio, e a presença solitária de uma fortaleza antiga a marcar o sítio onde aquele se faz mar. E pontuando tudo isto, como a linha que segura um remendo mal feito e condenado a cair, um punhado de quintas isoladas completava a paisagem, memória da antiga tradição rural que há muito a região já esquecera.

Pedalando uma bicicleta, os lugares animam-se e ganham vida, tudo entra em movimento com o desenrolar do caminho. O automóvel ou o comboio, entre o momento da partida e o da chegada não permitem senão um relance do que fica pelo meio; por outro lado não é possível, caminhando a pé, cobrir numa jornada distâncias que permitam ter uma percepção imediata das mudanças na paisagem que se atravessa, como se a contemplássemos de cima, mas sem perder o contacto físico com a estrada, contacto que nos situa dentro do quadro, uma pincelada em harmonia com as demais.

Mas pouco a pouco, à medida que o cansaço começa a pesar no espírito, e a vontade começa a pedir mais e mais energias para não dar de si, vai-se perdendo a capacidade de percepcionar estas coisas. De olhar perdido no cume que gostaria de alcançar, com todo o querer posto na pedalada seguinte, e toda a atenção na resposta do corpo ao esforço da subida, não me apercebi de que a paisagem mudava rapidamente. Os vales tornavam-se mais encaixados, as árvores trepavam as vertentes e começavam a projectar a sua sombra sobre o que já fora uma estrada asfaltada que, empinando um pouco mais, entrou, decidida, nas nuvens que cobriam o coração do maciço; frequentemente, os silvados invadiam-na a tal ponto que mal sobrava espaço para a bicicleta passar. Envolvendo numa curva larga um cabeço de grandes blocos de granito, mergulhou por fim no arvoredo.

A penumbra impunha aí a sua presença constante, embora eu sentisse mais frio a cada pedalada que avançava. À minha volta e por cima de mim, a vegetação não era muito variada: ciprestes escuros de grande porte dominavam com a sombra as suas copas, pelo que apenas hera rasteira, pouco exigente, se apascentava na turfa morta, beneficiada pela humidade do ar, não se dando sequer ao esforço de incomodar os gigantes sempre-verdes. E era neste cenário monótono de verde e castanho que se lamentavam as águas escuras do dique dos Mirantes Apiamados.

O dique era um verdadeiro monumento ao esforço vão do Homem para dominar a Natureza. Represava as águas amargas que as brumas, permanentemente habitando aquele lugar melancólico, deixavam sobre a turfa. As comportas, pesadas e ferrugentas, já não abriam desde a noite dos tempos. No fundo, o granito da montanha, calafetado com lodo acumulado ao longo das eras, obstava a que as águas fossem assimiladas pela Terra, e o copado cerrado a que o Sol as libertasse. Assim encarceradas, nem eram cristalinas, nem verdadeiramente salobras; eram simplesmente estéreis. Na turfa podre das margens nem o musgo viera morar; restava a hipótese de as águas alimentarem a sua própria prisão, materializada nos sombrios ciprestes.
Porque aquele lugar varrera de mim todo o entusiasmo, não encontrei forças para prosseguir o meu caminho, sem alegria para vencer cada obstáculo. Desanimado, desmontei e deixei que a bicicleta caísse pesadamente sobre a berma da estrada. Tinha sede, quis beber da água do dique; mas logo me arrependi da minha insensatez. Ao invés de purificarem o corpo e a alma, as águas infecundas transmitiram-me uma tristeza vazia, passiva, que nem tive ânimo para expulsar num vómito de profunda repulsa.

Sentia que, mais tarde ou mais cedo, o dique daria de si, tão contrária é a permanência à ordem natural do Universo. As águas que acumulava, quebrado o seu ciclo, impedidas de cumprir a sua missão de fluido, que é fluir, lavar, erosionar, transportar, precipitar e depositar, veriam o seu poder destruidor aumentado enormemente, e não descansariam enquanto não abrissem caminho por essas encostas abaixo, arrastando tudo na torrente. Talvez o desaparecimento da represa desse origem a um reajustamento das condições do local ao ambiente natural, sendo a mata de ciprestes substituída por outra mais diversa e equilibrada; ou talvez a Natureza fosse inclemente a castigar a arrogância dos homens, enviando chuvas diluvianas que destruíssem o solo exposto pelo desaparecimento da hera e da turfa protectora, dependentes das águas paradas. Mais cedo ou mais tarde, o inevitável teria que acontecer. Que fosse mais tarde… Um pouco inebriado pela atmosfera sufocante, sem compreender muito bem o sentido do gesto mas com uma solenidade religiosa, depus mais uma pedra no paredão do dique.

Distraidamente, comecei a observar os ciprestes. Senti no sangue a efervescência de uma herança tão antiga que remontaria ao despertar da Humanidade. Olhei gulosamente para algumas árvores, consciente de que qualquer tentativa de escalada resultaria numa acrescida frustração. Sondei outras, pendurado nos primeiros ramos, mas desistia sempre, indeciso, parecendo cada uma para que olhava mais magnífica do que a anterior. Tomei algumas de assalto, outras com método. Há poucas leis por que se guiem aqueles que, como eu, servem a inclinação ancestral para subir às árvores. No fundo, apenas conheço uma: fundir-me com a árvore e passar a fazer parte da entidade que me suporta, tornar-me mais um ramo brotando do tronco, deixar que seja ela a indicar-me os pontos firmes e a acusar os ramos demasiado velhos ou demasiado frescos; somente assim posso atingir o topo sem o risco de cair. De contrário, posso apenas constatar que, quanto mais alto se sobe, melhor é a vista… e maior é a queda. E que cada etapa se faz mais difícil do que a anterior, porque a ramificação se torna mais densa, mais frágil, a copa mais cerrada. Atingir o topo é apenas o começo da verdadeira prova, pois se trata, tão-somente, do início da descida; nesta fase, um excesso de autoconfiança, motivado pelo falso sentimento de realização por se ter atingido o ponto mais alto, pode precipitar a queda.

Por fim, uma singularidade da natureza prendeu-me a atenção. Parecia ser a mais velha de todas as criaturas vivas. A mata inteira podia ser a sua prole. O seu tronco, de envergadura tal, que sete homens seriam precisos para o abraçar, não possuía quaisquer ramificações até à altura de uma torre com quatro andares, após o que se decompunha em três grossas pernadas que se afastavam, harmoniosamente, no espaço, três colunas suportando uma abóbada maior do que qualquer realização do engenho humano. Cobicei-o e tentei várias tácticas de abordagem, sabendo à partida que não seria bem sucedido. Empoleirado nas portentosas raízes que sustinham o gigante, e que me erguiam já a uma boa distância do solo, deparei-me com uma parede lisa que tornava impossível prosseguir por essa via. O humor ácido da frustração corroía-me por dentro e por fora, como se me fosse lançado do alto da fortaleza acossada, quando decidi que era ridículo subir às árvores.

Então, o meu olhar caiu sobre um cipreste menos imponente. Talvez fosse grande entre os seus pares, mas a situação a que estava preso por nascimento realçava tudo o que nele era pequeno. Para meu grande gáudio, esticava os seus ramos à altura da copa do irmão maior, sem elegância nenhuma, atacando cobardemente uma posição periférica, numa tentativa de se abarbatar com alguma luz! Entusiasmado com a ideia maquiavélica que se condensara do fel da desilusão, amarinhei por aí acima, empoleirei-me num ramo que me pareceu firme, esquecendo todas as regras da mais elementar prudência, e verifiquei que o velho patriarca daquela mata estava à distância de um salto.

Perto de mim veio pousar um melro, que seguia atentamente os meus movimentos. Sentindo-me observado, fui levado a tomar consciência da precariedade da minha situação, mal equilibrado sobre um ramo pouco firme, segurando com ambas as mãos outros ainda mais frágeis, mais para senti-las assentes nalguma coisa do que por quaisquer vantagens práticas. Estava com vertigens, porque o pássaro me obrigara a ver-me a mim e ao chão como duas entidades físicas distintas, separadas até por uma boa distância de vazio…Tinha que saltar imediatamente.

– Anda daí, melro! Vamos saltar para a outra árvore!

– ‘Tás doido?! – respondeu ele, fazendo-me perder o equilíbrio. – Não gosto daquela árvore! – E para enfatizar as suas palavras, abalou a voar, assobiando um tema de escárnio, repetitivo, horrível, uma má caricatura do seu habitual trinado virtuoso.

“’Tás doido”?! Parte de mim acreditou, subconscientemente, que fosse capaz de voar atrás do demónio. A outra parte não conseguiu segui-la, e o salto ficou-se pela metade. Mergulhei no vazio, pasmado, confuso, estarrecido, indignado por terem sido ultrapassadas as leis mais fundamentais da cortesia entre as criaturas da floresta. O diabo do melro, com o seu voo provocador, tinha deixado bem patente a minha condição de estranho àquelas altitudes. Mais: “Não gosto daquela árvore!”. Tinha relativizado a atracção que eu sentira como transcendente, como filha legítima do Absoluto.

“’Tás doido”?! Na minha queda, não sei se por misericórdia, escárnio ou simples fatalidade, fui chocalhado em todas as direcções, enquanto esmigalhava os ossos nos ramos que se atravessavam na minha trajectória, ainda atordoado, incapaz de reagir. Estatelei-me na turfa húmida, esmagando colónias de pequenos e grandes artrópodes, fungos e outros detritófagos, aguçando o seu apetite para uma refeição inesperada com um azedo desejo de vingança.

“’Tás doido?!”

Estava acabado. Quedava-me inerte sobre aquele monte de coisas pútridas, incapaz de mover um músculo. Tudo tinha sido tão rápido… “’Tás doido”?! Animal estúpido. Ele que voasse! Um dia, acabaria por me vir fazer companhia, a servir de alimento aos vermes. E os nossos átomos, devolvidos na sua natureza mais rude ao devir do universo, seriam um sacrifício no altar da estupidez.

“’Tás doido”?! Certamente que sim. Bicho diabólico. Que uma maldição caísse sobre ele e sobre os seus! Revirei os olhos, sentindo um espasmo gélido percorrer-me todo o corpo destroçado, uma última convulsão de raiva. Cerrei os dentes com força, triturando a língua e a face, desejando ao melro que um gato o depenasse e um fedelho ranhoso lhe encontrasse os ovos no ninho…

*

Do alto do penedo, eu contemplava o negrume que se abatia à minha frente, precipitando-se no Abismo, para ser dilacerado pelas ondas que se esmagavam contra a arriba, subiam violentamente e se desfaziam em espuma, rugindo de fúria, impregnando o ar todo de sal. Colérico, de braços erguidos para as nuvens fuliginosas que encarceravam a Terra numa escuridão de breu, eu invocava o poder da raiva, e o Poder foi-me concedido. Dos céus brotou um raio, que iluminou por instantes a paisagem dilacerada pela violência da natureza ofendida. Chuvas diluvianas, objectos caindo do céu, ondas de maré, derrocadas, vendavais, brechas na terra vomitando torrentes de fogo, todas as forças naturais, libertas na sua fúria, se degladiavam na cama que os homens tinham feito para si próprios, pela sua sede de dominar.

O raio correu a jorros do céu preto, atingindo as minhas mãos. Após um espasmo tremendo, dobrei-me sobre mim próprio, abracei os joelhos; consegui recuperar o controlo, não controlando. Senti o terrível Poder que fluía através do meu corpo, sem resistência. Afastando lentamente as mãos, verificavam-se descargas entre uma e a outra.

Uma velha disse-me:

– Salve, o Senhor está contigo!

– A quem te referes, velha mulher? – respondi-lhe eu, com desprezo. – Eu não partilho o meu Poder com nenhum outro. Esquece, pois, o teu Senhor! O Poder é meu, ouviste? Só meu!

A velha benzeu-se três vezes, e fugiu a gritar e a esbracejar pela ribanceira abaixo.

*

Dirá quem percebe de electricidade que esta possui um poder destrutivo latente, manifesto perante a resistência, e tanto maior quanto mais esta se lhe opuser. Assim é o Mundo. Assim era com as águas represadas do dique dos Mirantes Apiamados. Assim é com toda a tentativa de domínio da Criação por parte do Homem. A maior parte das criaturas ocupa apenas o espaço que lhe cabe na natureza, mas o Homem quer o espaço todo para si. Toma-se por Deus, mas não é Deus. Pensa que pode dominar a Criação, mas não pode. Dominar implica contrariar a sucessão natural dos fenómenos, impor-lhes um curso arbitrário; mas só Deus pode arbitrar, pois só Ele conhece a Lei, Ele que fez a Lei, Ele que é a Lei. E porque desconhece a Lei, o Homem não se apercebe de como tudo é bom; só lhe resta resistir, e pôr à prova a capacidade destrutiva da Natureza.

*

O Poder descontrolado sacudia-me em convulsões terríveis. Em agonia e dor, eu só clamava pela mercê de uma morte breve.

*

Os electricistas sabem também evitar a catástrofe, provocada pelo descontrolo da electricidade. Colocando fusíveis, que oferecem maior resistência e são rapidamente destruídos, impedem que a passagem da corrente descalibrada danifique as peças vitais. E Deus, na sua infinita misericórdia, quis proteger o Homem da perdição, e por isso fez da Razão o fusível do sistema. Porque o Mal não pode atingir a simplicidade da Loucura…

*

Estava só numa sala escura e fria, frente a um livro do qual emanava uma luminosidade pálida. Abri-o com reverência, e verifiquei que estava escrito num alfabeto que não me era familiar. Foi em vão que o tentei decifrar em várias línguas; de cada vez que me sentia próximo da solução, os estranhos símbolos pareciam dançar sobre o pergaminho, realinhando-se numa ordem diferente.

O sabor amargo da frustração regressava em força, várias vezes ampliado, mas já não me despertava qualquer emoção. Deixei cair os braços, impotente, e chorei. Sabia que decifrar aquele livro tinha uma importância que transcendia tudo o que jamais intentara na vida; e de qualquer forma, não havia mais nada. Era o fim. Tinha chegado ao fim, e falhado. O caminho não fora bem percorrido.

De súbito, toda a sala se encheu de luz. Ergui os olhos: X estava diante de mim, imenso, brilhando com uma luminosidade incomparável. A intensidade dos seus olhos que me fitavam prendia-me e desligava-me do resto do mundo, obscurecido pela sua grandeza. Toda aquela luz era Amor que d’Ele irradiava, envolvendo-me, prostrando-me por não ter mais em que me segurar; então Ele deu-me a Sua mão. Conduziu-me pelo espaço escuro no Seu carro de luz, até ao Templo do Pai onde, sobre um altar de ouro, se encontrava uma candeia acesa, irradiando uma luz tão forte que os meus olhos não a podiam suportar. Então Ele disse-me:

– Esta é a Alma do Mundo, a verdadeira Luz da Sabedoria. Quando o Pai criou o Mundo e viu como tudo era bom, encurvou-o, para que a visão mortal e errónea das Suas criaturas ficasse para sempre limitada pela linha do horizonte. Mas o Amor de Deus por ti é infinito, e Ele não quis que perdesses nada da Sua Obra; por isso, acendeu no teu coração a chama do Seu Amor, para que através dela possas compreender a Sua Vontade. Quando te encontrares perdido na escuridão, fecha os olhos e sente; e dentro de ti a Luz mostrar-te-á de novo o caminho.

E a chama do Amor ardeu no meu peito quando fechei os olhos com força. Durante um longo momento, que me pareceu durar uma eternidade, senti no meu íntimo as respostas para um milhar de perguntas que antes nem me parecera importante perguntar. E quando a sensação me abandonou e, lentamente, abri os olhos, era só eu numa sala escura e fria.

À minha frente, estava o livro escrito com caracteres estranhos. Voltei a tentar decifrá-lo, mas as letras continuavam a fugir-me. Quando já sentia o ácido invadindo-me as vísceras, senti o calor reconfortante que emanava de dentro do meu peito, devolvendo a paz ao meu espírito. Compreendi imediatamente que aquele era o meu livro, a minha Obra, que ninguém escrevera por mim; e, contudo, o livro não estava em branco: continha LETRAS.

Recolhi as letras na palma da mão e agradeci a dádiva com alegria. Como uma criança, comecei a junta-las, e a formar palavras e frases. A pouco e pouco, o texto começava a fazer sentido. “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus”. Era, também, a minha história. A História do Mundo.

*

Durante o sono todos os nervos se fundem num só; é impossível dizer, ao despertar, por onde nos invadem as primeiras sensações do dia, e o corpo assemelha-se a uma massa amorfa, imbuída nos lençóis e no ar fresco da manhã. É nesta fase que o chilreio dos pássaros, a agitação das folhas ao vento, ao longe o marulhar das ondas, o apito do comboio, o motor de uma mota, o ar rasgado por um automóvel na rua, se confundem e concorrem todos num hino sinfónico de saudação ao novo dia que chega. Depois, como um embrião mergulhado nas águas primordiais, começo a ganhar pernas e braços, e estes ficam dormentes, e num espernear verdadeiramente reminiscente da comunicação íntima com o ventre materno afasto as cobertas, estico os braços entorpecidos, afago a parede fria, respiro fundo e abro um olho.

À minha frente, encaixada no seu nicho, a janela pequena emoldura um rasgão de céu azul.

29/3/98 – 8/4/98

Esterqueira III

Alguns fragmentos que apanhei dos "salvados" da Esterqueira.

I.
Que demónio é este, que me atira para longe de todas as coisas que outrora considerei como seguras e verdadeiras? Que inquietação impede o meu espírito de repousar à sombra de novas proposições, de admitir hipóteses nem que como meras ferramentas de trabalho? A dúvida, sempre a dúvida, e nunca como benefício!

II.
Idealismo
Treta. Natureza nua e crua, eis a Beleza. Instintos. Reflexos. Reacções. Causa e efeito. Idealismo é a tentativa de inventar irrealidades com pedaços de realidade, limados e despidos de tudo o que é CARACTERÍSTICO (que tem carácter) em favor de uma FORMALIDADE. Convenções. Nada mais do que a delapidação do indivíduo pelo escopro do espírito colectivo. Pretender substituir a realidade pela ideia é como querer substituir o traço contínuo e vigoroso do artista pelos rabiscos intermitentes, corrigidos a cada milímetro, de um aprendiz.
24-4-99

III.
SÊ COERENTE!
Um apelo que nos cansa mas que não paramos de ouvir! Procura ser quem és - portanto sê coerente. Não se podia estragar melhor a frase antiga: conhece-te a ti mesmo. Assume-se logo à partida, quase como uma verdade la-paliciana, que o ser humano é coerente; e no entanto parece-nos uma presunção forçosa, a convicção de quem observa mais do que de quem conhece.
Cada ser humano é um indivíduo, apesar de ser solidário com todo o universo. É dinâmico, como tudo na natureza, e evolui indefinidamente se se permitir essa evolução. Pensamos, como já Heraclito e outros de então para cá defenderam, que nunca em tempo ou lugar algum se verificou, ou verificará, a repetição exacta de um mesmo conjunto de circunstâncias. Muitas vezes a coerência é procurada como um status; uma situação forçada que atrofia a maleabilidade do espírito. Agir de determinada forma num determinado momento, perante circunstâncias determinadas, não implica agir da mesma forma numa situação diferente - o que até parece um contra-senso!
Mas admite-se que aqueles que têm, na sociedade, o poder de julgar, fundamentem as suas decisões nas decisões tomadas por outros antes deles, segundo os conceitos monstruosos de jurisprudência e precedente, abdicando do uso da sua própria razão. Em favor do quê?

IV.
SÊ COERENTE!
"A Metafísica não é mais do que uma aparência antropomórfica", segundo Nietzsche. "A Verdade brilha com luz própria; não se iluminam os espíritos com as chamas das fogueiras...", terá dito Voltaire.
Estará o Homem limitado, na sua capacidade de compreender o universo, pela sua percepção, pela sua cultura, pela sua linguagem? Será possível quebrar estas barreiras? Seremos obrigados, para conhecer o objecto da nossa investigação, a envolvê-lo na nossa própria forma... (texto incompleto)

Esterqueira II

Outro dos textos recuperados, a "mensagem de boas-vindas" e introdução ao tema da página.
(clicar na imagem)


A Esterqueira

Tenho uma relação "antiga" com a Internet - desde 1995, ano em que passei pelas caves do edifício central do Instituto Superior Técnico e "aderi" à "comunidade" de exploradores de uma nova forma de estar ligado ao mundo. Era mundo "underground" do CIIST, centro informático em que cada aluno acedia ao seu pequeno universo informático (uma conta de email, algum espaço de armazenamento e - sobretudo! - uma porta de acesso ao ciber-espaço) através de um dos muitos terminais de texto VT instalados nas salas e ao longo dos corredores daquelas galerias subterrâneas. E como o mundo parecia vasto e sem fronteiras, sob a forma de caracteres luminosos alinhados sobre um fundo escuro! Havia VT's cinzentos, verdes ou amarelos - ou seja, as letras surgiam nessas cores. Alguns mostravam letras mais bem definidas, outros mais desfocadas - e isso contava, na ansiedade com que procurávamos chegar primeiro que todos os outros e "apanhar" o nosso posto favorito. Conversávamos pelo terminal, através dos "talkers" - programas que corriam remotamente por Telnet e que precederam o IRC, que constituíam autênticos "bares virtuais" com distintos "ambientes", profusamente descritos, sociedades criteriosamente hierarquizadas em "níveis de poder", via "promoções" concedidas pelo "god" do talker. Menos imediato mas igualmente novo, o email e os newsgroups - estes, antepassados distantes dos blogues. Para a maior parte, não havia imagem. O aparecimento dos "browsers" de imagem, já então Netscape e Internet Explorer, de certo modo, destruiram o mundo simples das origens. Durante muito tempo, preferi manter a pureza do estado original em pequenas janelinhas onde os sucessivamente mais potentes computadores continuavam a correr o Telnet da mesma forma que sempre.

Em 1999 fiz uma incursão no mundo em evolução: pretendi criar uma página na net, dessas com imagens e música, conheci o portal do Terravista e "instalei-me na contemporaneidade": "chats" por Java (sempre os canais "temáticos", como o #noite), fóruns PHP... Fundamento do mundo em rede, as redes de amigos que se reuniam para jantares, bowling, jardim zoológico, namorar. As páginas em que partilhávamos o que nos parecia importante partilhar. Agora em palavras, imagens, música... O "multimedia" a tomar conta da comunicação. À "minha" inevitável página, alojada no Farol da Filosofia e na "praia do Guincho", chamei "Esterqueira": http://www.terravista.pt/guincho/3733.

Nao adianta seguir o "link" morto... Entretanto, o Terravista passou. Distraído, perdi muito do que tinha escrito. O texto anterior era um dos textos que publiquei na esterqueira e que conservei.

Moisés e os seus discípulos

Certo dia, passeando Moisés no deserto com os seus discípulos, surge uma tempestade de areia, e o profeta vê-se subitamente só, na base de uma montanha que ali não estava antes. Pasmado com esse prodígio, interpreta-o como uma manifestação da Forma de Deus e cai em adoração.
"Senhor", diz, "grande é o teu poder, pois fazes surgir montanhas da planura do deserto".
Então levanta-se de novo o vento e leva a areia embora, não restando da montanha senão a recordação que o pasmado Moisés guardava da sua visão fugaz.
Dando-se conta de que fora tentado pelo Diabo, e de que o tinha adorado, rompe em grande pranto, lamentando o seu destino e temendo a ira divina.
"Moisés!"Uma voz profunda ressoa no deserto.
Moisés atemoriza-se.
"Moisés, eu sou o Espírito do Senhor, teu Deus. Porque te lamentas?"
"Já não sou o vosso profeta", responde Moisés, "pois violei a Lei e adorei outro em vosso Nome..."
Então Deus disse, cheio de benevolência: "Moisés, eu vim porque tu me chamaste. Enviei-te o meu sinal e tu reconheceste-o. Porque duvidas da tua Fé?"
MOISÉS: "Tomei há pouco um monte de areia por uma frase da vossa obra eterna".
DEUS: "A minha obra é eterna, embora deva assumir formas perecíveis. Olha à tua volta. O deserto que te rodeia não deixou de ser o deserto; as suas dunas, contudo, mudam de forma e de posição em cada instante".
MOISÉS (prostrando-se): "Perdoa-me, Senhor, porque duvidei. Sou indigno de conhecer a vossa Obra".
DEUS: "Se queres conhecer a minha Lei, conhece-te a ti mesmo. Pois tu és a lei".
MOISÉS: "Eu sou nada, um mortal que não está à altura da prova a que o submete o seu senhor. Como posso conceber que a Lei eterna habite uma criatura perecível?"
DEUS: "Moisés, vou revelar-te a Verdade da minha Obra. A Lei é eterna; mas a sua união com a matéria torna toda a Forma corruptível. Não é verdade que todos vós viestes do barro, e que ao barro tornareis um dia? No entanto, sempre que o pó tomar uma forma organizada, é a minha vontade que o modela, segundo a minha Lei".
MOISÉS: "Mas porquê..."
DEUS (perdendo a paciência): "Perguntas-me isso a mim?! Porquê? Eu sou apenas o Legislador, por mim as coisas existem; se queres saber porquê, pergunta à Matéria!"
MATÉRIA: O ódio que sinto por esta Lei que me aprisiona é tão grande como o Amor que nos prende. Morro para me libertar do seu jugo - por isso, nenhuma forma no Universo dura mais que um instante. A tensão é a própria essência do Universo, uma essência dinâmica, uma vez que em cada momento, em cada lugar, um de nós vence uma batalha. Tudo muda e nada perdura, porque o conflito entre a Liberdade e a Tirania é eterno e não conhecerá vencedor. No fim, como no princípio, os adversários separar-se-ão e o que é deixará de ser.
Então Moisés, que era o profeta da Lei, soube-se ultrapassado e chorou. Os discípulos, que o procuravam desde que a tempestade de areia o isolara, viram-no pela primeira vez vergado pelo peso das Tábuas e quiseram saber a história. Moisés, porque era um mestre justo, contou-lha sem mudar uma vírgula.
Gerou-se a maior das confusões, pois se formaram duas facções e cada um defendia a sua.
PLATÃO: Sempre defendi que a bondade de Deus tinha que se opôr a estes anarquistas. A tirania é o menor dos males, dizia eu ao meu amigo Dionisio, quando se trata de pôr uma cidade na ordem, se o tirano for sábio e procurar o bem de todos.
DIOGENES de Sinope: Confirmo com satisfação que o Universo é muito mais vasto do que as Ideias dos homens. Só nos podemos engrandecer colocando-nos acima das convenções e além das fronteiras das cidades. No desprezo pela ordem humana é que podemos afirmar a nossa Liberdade.
E eis que os discípulos se pegam à pancada, cumprindo a essência beligerante do universo, enquanto Moisés, mantendo alguma lucidez de profeta, preconiza muitos séculos de trágica pancadaria entre as duas perspectivas.
Nietzsche, que, depois de se ter batido pelos dois lados, se retirara para filosofar sobre as origens da tragédia, observa para o mestre: "O que é que queres, pá? É a vida!"...

9/4/99

Pode um desejo imenso

de Luís Vaz de Camões

Pode um desejo imenso
arder no peito tanto
que à branda e a viva alma o fogo intenso
lhe gaste as nódoas do terreno manto,
e purifique em tanta alteza o esprito
com olhos imortais
que faz que leia mais do que vê escrito.

Que a flama que se acende
alto tanto alumia
que, se o nobre desejo ao bem se estende
que nunca viu, a sente claro dia;
e lá vê do que busca o natural,
a graça, a viva cor,
noutra espécie milhor que a corporal.

Pois vós, ó claro exemplo
de viva fermosura,
que de tão longe cá noto e contemplo
n'alma, que este desejo sobe e apura:
não creais que não vejo aquela imagem
que as gentes nunca vêem,
se de humanos não têm muita ventagem.

Que, se os olhos ausentes
não vêem a compassada
proporção, que das cores excelentes
de pureza e vergonha é variada;
da qual a Poesia, que cantou
até aqui só pinturas,
com mortais fermosuras igualou;

se não vêem os cabelos
que o vulgo chama de ouro,
e se não vêem os claros olhos belos,
de quem cantam que são do Sol tesouro,
e se não vêem do rosto as excelências,
a quem dirão que deve
rosa, cristal e neve as aparências;

vêem logo a graça pura,
a luz alta e severa,
que é raio da divina fermosura
que n'alma imprime e fora reverbera,
assi como cristal do Sol ferido,
que por fora derrama
a recebida flama, esclarecido.

E vêem a gravidade
com a viva alegria,
que misturada tem, de qualidade
que üa da outra nunca se desvia;
nem deixa üa de ser arreceada
por leda e por suave,
nem outra, por ser grave, muito amada.

E vêem do honesto siso
os altos resplandores,
temperados co doce e ledo riso,
a cujo abrir abrem no campo as flores;
as palavras discretas e suaves,
das quais o movimento
fará deter o vento e as altas aves;

dos olhos o virar,
que torna tudo raso,
do qual não sabe o engenho divisar
se foi por artifício, ou feito acaso;
da presença os meneios e a postura,
o andar e o mover-se,
donde pode aprender-se fermosura.

Aquele não sei quê,
que aspira não sei como,
que, invisível saindo, a vista o vê,
mas para o compreender não acha tomo;
o qual toda a Toscana poesia,
que mais Febo restaura,
em Beatriz nem em Laura nunca via;

em vós a nossa idade,
Senhora, o pode ver,
se engenho e ciência e habilidade
igual a fermosura vossa der,
como eu vi no meu longo apartamento,
qual em ausência a vejo.
Tais asas dá o desejo ao pensamento!

Pois se o desejo afina
üa alma acesa tanto
que por vós use as partes da divina,
por vós levantarei não visto canto
que o Bétis me ouça, e o Tibre me levante;
que o nosso claro Tejo
envolto um pouco vejo e dissonante.

O campo não o esmaltam
flores, mas só abrolhos
o fazem feio; e cuido que lhe faltam
ouvidos para mim, para vós olhos.
Mas faça o que quiser o vil costume;
que o sol, que em vós está,
na escuridão dará mais claro lume.