O sol ia fugindo para terras distantes, mas o reflexo doirado
cresceu ao mesmo passo, estendendo-se sobre a superfície salgada e aproximando-se, acabando por atingir as arribas mesmo abaixo dos pés do
marinheiro. Parecia querer abrir caminho através da rocha e continuar sempre,
para trás dele, que não pôde deixar de se virar.
A silhueta da cidade, com o recorte do casario coroado pelos últimos raios de sol que incidiam já somente sobre o topo dos telhados, recortava-se no céu azul e violeta do ocaso. Parecia um templo majestoso,
digno do maior dos deuses, com as suas cúpulas revestidas de ouro puro. Vista
desta distância e à luz difusa do fim do dia, era exactamente igual à memória
que ele guardava; em nada mudara. Uma sensação de paz maior do que qualquer
amargura preencheu-o. Num instante, começou a compreender.
Nesse mesmo instante, recomeçou a viver. O resto da sua vida conta-se em duas linhas; a vida que o levara até aí – essa, sim, é uma história que merece ser contada.
I
Logo que soube sonhar e ter desejos, o seu maior desejo era conhecer o
vasto mundo.
Desde criança, ouvia contar as histórias mais inacreditáveis acerca
da imensidão de terras que existia para lá do oceano – cuja própria existência
era, só por si, quase inimaginável. Se saía da cidade e subia os montes, a poente, mundo parecia acabar ali mesmo, nas
escarpas onde a rocha se precipitava em enormes blocos sobre o mar exaltado; um
farol guiava os navios, de noite, marcando, ao longe, o termo das terras familiares;
o mar parecia interminável até à linha do horizonte.
De volta ao casario, corria para ver a chegada dos navios ao porto,
maravilhando-se com os cheiros e as belas cores exóticas que deles saíam,
ouvindo os relatos de velhos lobos-do-mar, sonhando com gentes estranhas e aves quiméricas, um céu diferente e uma
vastidão de oceano para navegar.
Certo dia, sentiu ficar para trás a infância e pediu para embarcar num dos maiores navios mercantes
que costumavam atracar no porto; pertencia a um armador muito rico, que tinha
vários navios, alguns ainda maiores. Mas naquele navio disseram-lhe que não faltavam rapazes,
muitos mais robustos do que ele, desejosos de abraçar a vida do mar. Tentou vários navios e obteve a mesma resposta.
Perante a
invariável recusa, decidiu empregar-se no porto, como estivador, ajundando a carregar e a
descarregar os navios. Aí nunca faltava o trabalho e o rapaz trabalhou esforçadamente enquanto esperava a sua
oportunidade. Cresceu em robustez, transportando pesadas cargas, durante três
anos, até que tornou a pedir um lugar no mesmo navio a que se dirigira primeiro –
mas continuava a perder para outros. Constrangido, voltou a procurar lugar noutros
navios menores – mas em vão. Em todos os pequenos navios diziam-lhe que já tinham
a tripulação completa; ninguém estava disposto a embarcar mais uma boca
inexperiente na perigosa viagem para outros mares.
O pobre rapaz perdia a esperança de alguma vez ser aceite em
qualquer embarcação. Jovem e sem rumo, continuou a trabalhar no porto e a admirar os navios ao
longe. O desejo não morria no seu espírito, mais forte do que a indiferença
alheia; sentia-o, agora, misturado com tristeza por não se encontrar a bordo, empurrado pelo vento em direcção ao vasto mundo de inumeráveis cores e aventuras. Tomou uma decisão: haveria de embarcar, nem que, para isso, tivesse que
construir o seu próprio barco. Era esse o caminho certo: aparelharia, ele mesmo,
o seu navio e partiria em busca da imensidão do mundo.
Empregou-se no estaleiro, onde também nunca havia falta de
trabalho. Carregou tábuas, pregou pregos e esticou
cordas, coseu velas e nunca se permitiu um momento de desatenção, até saber
tudo sobre a maneira de construir navios. Mas aquilo que recebia no estaleiro
mal lhe chegava para viver e, ao cabo de outros três anos, não estava mais perto
de poder fazer-se ao largo no seu próprio navio. Mais uma vez, o desejo forte
que o animava disse-lhe que não conseguiria mais nada trabalhando no estaleiro.
Decidiu tornar-se lenhador e assumir por inteiro a tarefa que se propuzera.
Nesse
tempo, a floresta ainda abundava, mas perto do mar estava toda requisitada para
usufruto dos grandes armadores navais. Mais longe, contudo, cresciam velhas e imensas florestas de madeiras nobres que não eram propriedade de ninguém. Deixou, pela primeira vez, a sua cidade natal e porto de onde sonhava vir a fazer-se ao mar; viajou para as montanhas
no interior, trabalhando durante um ano a abater árvores, outro a aparelhar
tábuas. Findos dois anos, tinha reunido a madeira aparelhada que considerava
suficiente para construir a sua embarcação. Ao todo, ficara com uma décima
parte de toda a madeira que cortara e serrara, tendo vendido o resto para
sobreviver e custear o transporte do restante até à cidade.
Regressou à cidade com a madeira que era, já, uma parte do seu sonho concretizada. Como mais nada lhe sobrara, perdeu ainda mais um ano a coser pano e enrolar
corda, para que com a décima parte do seu trabalho dispuzesse de material em
quantidade suficiente para iniciar os trabalhos no navio. Tal era o preço que o
mundo lhe pedia, mas o seu sonho estava cada vez mais perto e o desejo movia-o
com mais força do que todos os obstáculos. Nunca se distraia.
Findo o décimo ano desde que pedira, pela primeira vez,
para embarcar no maior navio que fundeava no porto, tinha construído o melhor
barco que o saber permitiria à altura, concebido com dimensões adequadas
para que pudesse manobrá-lo sozinho. Exultante, sem esperar, fez-se ao mar, numa madrugada fria de Outono; vivera
metade da sua vida somente do seu sonho; nada o prendia à terra que o vira
nascer, ninguém veio para o ver partir.
Navegava para a saída do porto. Ao cruzar-se com outros navios que
sulcavam as águas, trocava acenos com as tripulações – que, finalmente, lhe respondiam, como
seus verdadeiros companheiros!
Aproveitou o refluxo da maré para deixar rapidamente a corrente
do rio, que se perdia no mar em frente à cidade. Deixou-se levar pelos ventos
suaves, que o afastavam da costa numa linha oblíqua. A ondulação manifestava-se
com maior intensidade à medida que se afastava; era uma sensação nova que o
enchia de prazer. Passou por bandos de gaivotas, ora flutuando nas águas, ora
esvoaçando desorganizadamente sobre algum cardume; ocasionalmente, havia peixes que
rompiam a superficie num voo de alguns metros em que se misturavam com as aves,
para mergulharem logo a seguir, numa nuvem de espuma cintilante. Deleitado, saboreando desde tão cedo as maravilhas que antecipara durante anos, contemplava o mar próximo, que parecia ter ganho vida. Chegou a ver grupos de golfinhos,
nadando rapidamente ao lado e à frente do seu veleiro. As maravinhas que observava falavam-lhe ainda das muitas mais que havia
ainda por descobrir.
Os últimos raios de sol pareciam pintar nas águas escuras uma
estrada de ouro resplandecente até à linha do horizonte, enchendo o rapaz de
desejo de alcançar este limite e ir mais além. As primeiras estrelas que se
acenderam nos céus crepusculares encontraram-no num estado de assombro solene
perante o sonho que via realizar-se.
II
Terminado o primeiro dia da sua viagem, navegava do sabor do
vento e das correntes marítimas. A madrugada veio lembrar-lhe de que perdera a direcção
da costa. O mar e o céu confundiam-se na escuridão, dando-lhe a sensação de
flutuar no vazio. Não tardou a aperceber-se de que, embora possuísse a melhor
embarcação que a ciência de construção naval podia conceber, não sabia
navegá-la. Aquela complexa e habilidosa construção de
cordas, mastros e roldanas, a que se dedicara tantos anos, valia-lhe, agora, tanto como uma tábua
à deriva. Nem sequer sabia nadar...
Nos dias que seguiram, não conseguiu avistar quaisquer sinais
de terra. Passada a primeira semana, o mar perdera todos os seus atractivos,
tornando-se monótono e uniforme em todas as direcções. Quando o vento soprou mais forte e a ondulação se
levantou, o rapaz vomitou copiosamente. Na sexta noite, uma tempestade ergueu as
águas negras num caos de vagas que se degladiavam furiosamente, erguendo para
o céu cristas ameaçadoras, a que os ventos arrancavam cortinas de espuma, que
salgavam a chuva que caía, grossa e desvairada, em todas as
direcções. A visão deste combate insano, proporcionada por raios que as nuvens, enlouquecidas, cuspiam ininterruptamente
sobre o mar, e que abalavam os ares com o rugido tenebroso dos trovões, encheu o espírito do rapaz de terror, de estar perdido ante o desenrolar
deste sonho, feito hediondo pesadelo, que já não controlava. Agarrava-se com todas as suas
forças ao navio que com ciência e labor construíra – tão bem concebido e construído que, mesmo desgovernado,
constituia ainda a única segurança que podia sentir, face a uma natureza
violenta e imprevisível.
O nascido desejo de reencontrar terra firme concretizou-se rapidamente, contra um recife que desfez por completo a
melhor embarcação que podia enfrentar os mares profundos e o sonho de toda uma
infância. Aos vinte anos, o rapaz perdia a sua inocência, num mar salgado de lágrimas
convulsas.
A tempestade passou, mas a maré tornou a lançá-lo à corrente, sem vontade de sobreviver, agarrado por instinto aos destroços da sua embarcação. Do
sol procurava agora refúgio sob as tábuas partidas, esforçando-se, apenas, por
respirar e fugir à mordedura quente, enquanto a noite trazia o nevoeiro frio de
que não havia fuga possível. A fome e a sede clamavam por satisfação e não eram
satisfeitas. A febre e o delírio chegavam para pôr cobro ao esforço involuntário
de sobrevivência. Quando o desfecho iminente parecia mergulhar a sua aventura no
esquecimento, antes mesmo de começar, a salvação chegou pela mão da fortuna.
Uma embarcação vinda de outro porto fora desviada da sua rota
pela mesma tempestade. Manobrava para evitar os recifes, quando o corpo foi
avistado, flutuando entre os destroços. O rapaz foi içado para bordo e socorrido.
Lentamente, recuperou as forças e ultrapassou, instintivamente, a angústia de tudo o que que atravessara. Deu-se conta de que se via na situação que sonhara em criança – embarcado, navegando pelo mar imenso num dos grandes navios que comerciavam por todos os portos do mundo.
Jovem, pôde pagar a sua dívida com duro trabalho, limpando os convés, fazendo pequenos recados. O comandante do navio interessou-se pelo náufrago – de início, por superstição, que aproxima as pessoas daqueles a quem a sorte parece ter tocado, mas com o passar dos dias passou a admirar a sua energia e entrega a qualquer tarefa, depois a sua familiaridade com os aspectos técnicos do navio e capacidade de, sob orientação, facilmente aprender a realizar qualquer trabalho com os marinheiros mais experientes.
A fidelidade deste
fiou-se na mesma medida. O resto da tripulação seguia na direcção contrária, desmoralizada por tempo demais no mar, a que a
tempestade os levara e obrigada, ainda, a severas restrições. Quando se instalou um motim a bordo, o rapaz
defendeu o superior e foi posto a ferros. Conheceu o seu primeiro porto
estrangeiro através de uma fenda no casco. Foi abandonado em terras desconhecidas, enquanto o capitão sofria pior
sorte.
Vendo-se, de novo, em terra firme e no pleno controlo dos seus
movimentos, pôde, finalmente, maravilhar-se com as estranhas características das
paragens banhadas por mares distantes. Maravilhou-se com a cor de ferro da terra e o verde vivo das
plantas, os sons das aves e de outros animais (que quase nunca avistava), os
cheiros intensos porque diferentes de tudo o que alguma vez conhecera. Sendo
ávido de novas experiências e sensações, entusiasta por natureza, depressa aprendeu a
misturar-se com a gente desses lugares e a viver no seu meio, de acordo com as
suas maneiras.
O apelo do mar imenso, no entanto, mantinha-se vivo; a fúria a que
sobrevivera, assim como a sequência de acontecimentos que lhe sucederam, tinham-lhe trado o medo de experimentar novas aventuras a bordo dos
navios mercantes; descobria que o gosto que tinha ganho pela sua
nova vida se gastava, pouco a pouco, no desejo de não ficar no mesmo sítio e
conhecer ainda outras paragens diferentes.
Mais experiente, desta vez, não teve
problemas em embarcar num dos navios que regressavam às suas terras cheios de
mercadorias. Abraçou a vida de marinheiro com a alegria que lhe vinha de um
sonho, por momentos, quase perdido, que se realizava sem que desse por isso.
A alegria e a dedicação ao seu trabalho levou a que aprendesse, com
o tempo, as artes de manobrar um navio. A confiança que conseguia conquistar a
sucessivos comandantes valeu-lhe preciosos conhecimentos de astronomia e navegação
científica, que só eram transmitidos a quem manifestava empenho e fidelidade
sem reservas. Subiu rapidamente na vida do mar e conheceu todos os grandes
portos comerciais do mundo; chegou a capitanear navios e até voltou a armar o
seu próprio navio; mas nunca mais voltou à sua cidade natal. Cada nova cidade
trazia-lhe mais novas descobertas, a que se entregava com voluntarismo, sem que qualquer delas, ou o seu conjunto, sossegassem a avidez de novidade que lhe inundava a alma.
Nenhuma o prendia mais do que alguns meses; quando os navios eram carregados
para uma nova viagem, ele já se imaginava longe.
Com o tempo acabou, por conhecer bem todos os climas, todas as
estrelas, todas as plantas e animais e todas as cores, cheiros, sons e sabores
de todas as terras e mares por onde passara. Até que, um dia fez uma descoberta
que o abalou profundamente: em cada lugar havia qualquer coisa que observava mais demoradamente, que lhe merecia
uma atenção especial; por vezes era uma linha de costa, por vezes eram as maneiras das pessoas, pormenores de construções, sombras, luz ou temperatura que lhe
lembravam, como pequenos desenhos familiares num padrão exótico, a sua cidade natal.
No dia em que disso teve consciência, nesse dia, os joelhos que nunca mais tinham vacilado perante a loucura do oceano
cederam; e o marinheiro chorou de saudade. O calor das lágrimas que humedeciam
as mãos ásperas de trabalho incendiou-lhe o espírito com um ardor maior do
que todas as alegrias e todas as tristezas, todos os espantos e todas as novidades no seu conjunto. A vontade de
regressar tornou-se de imediato uma certeza e cristalizou em decisão.
Na viagem de regresso, adoeceu com febres altas e delirou. Antes, o seu desejo vogava no futuro e abria-se à sua indefinição; agora, era a
angústia de querer ver de novo o lugar que vira nascer todos os seus sonhos e desejos; a necessidade absoluta, que substituira a curiosidade desprendida, queimava as suas forças a cada dia
que passava. Pela segunda vez, após tantos anos, a sua vida dependia
inteiramente de cuidados alheios. Na viagem de regresso, como na de partida, a sua salvação chegou no último
momento. Depois de passar dias fechado no seu camarote, não se conteve mais e, com uma força de presença que o delírio só vinha
reforçar, abandonou em plena noite o ambiente asséptico e saíu para o vento, salgado
e cortante, que varria o convés e enchia o velame, impulsionando o navio na sua
corrida. Subindo à proa, estacou, agarrando-se com as forças que lhe restavam
à amurada, impassível ao vento e às ondas que agitavam o navio, de olhar fito
no vazio escuro. Aguardou o seu destino, sentindo que o desfecho não tardaria mais do que
a alvorada.
Concentrou toda a sua vida nesse momento, em que devolvia a alma ao
lugar que lhe pertencia. Morte ou regresso, eram a mesma coisa.
A vida foi-lhe, mais uma vez, reenviada, com uma luz que cortou a noite. O farol
marcava o começo das terras familiares, e era imenso o mar que ficava para
trás... Inspirou fundo um último sopro salgado. A silhueta das arribas
familiares recortava-se contra os primeiros alvores da manhã. Desceu ao convés,
confirmou o imediato no comando das manobras de aportagem e regressou ao seu
leito. A febre recedendo, dormiu um sono profundo e sereno durante dias. Findavam mais de vinte anos de viagens.
IV
Na manhã do sexto dia, desceu do navio à cidade: foi como se o coração lhe gelasse e se desfizesse em estilhaços
cortantes. Como estava diferente! O porto crescera, havia muitos mais armazéns
e maiores, todos apinhados de mercadorias e de gente. Dos velhos barracos
onde trabalhara, nem vestígio. As pessoas andavam mais bem vestidas e
ostentavam no rosto um semblante frio de indiferença. Os velhos marinheiros, que
outrora eram assediados por curiosos e devoradores de histórias – que ele próprio,
em tempos, fora – eram enfrentados com a mesma fria indiferença. A cidade vestira-se de
todas as cores e cheiros exóticos que ele conhecera nas suas viagens – cores e
cheiros a que se habituara e por que perdera, já, todo o interesse. Encontrou as
mesmas ruas de outrora, mas irreconhecíveis. Das varandas e janelas pendiam
plantas exóticas, e as lojas expunham produtos importados que os navios traziam
de terras distantes. Havia, por todo o lado, gaiolas com aves de cores e vozes
estranhas. O estrangeiro estampara-se em todos os rostos, em todos os gostos,
nas maneiras e costumes da cidade. E ele, marinheiro regressado, descobria-se
estrangeiro entre os seus.
A desilusão foi profunda. Enchera a alma de saudade, dedicara-se todo a este regresso que via, agora, impossível de realizar. Mergulhou numa depressão amarga. Passou a viver só no seu navio, despediu os companheiros e voltou a encontrar muitos deles nos antros de vício, onde se embebedava
constantemente. Dissipou em sete meses tudo o que tinha
ganho nas suas viagens e acabou por vender o navio a um mau preço, para pagar as
dívidas da sua vida de vício. No oitavo mês de regressado, dormia na rua, rebuscando o
lixo no porto por comida. Via os barcos partir e regressar, com
total indiferença. Concentrava-se na amargura do seu sonho roubado.
Então, pela terceira vez, encaminhava-se para um desfecho
ignóbil da sua vida. Saiu da cidade e subiu às arribas, crendo que só lhe restava vontade suficiente para a decisão de pôr fim à vida, no mesmo mar que, decerto, por distracção, não o levara vinte anos atrás.
Do alto dos montes, à beira das arribas, estendia-se o oceano salgado e o Sol descia sobre a
bruma castanha no horizonte. Viu, de novo, como no primeiro entardecer que passara a bordo do seu primeiro navio, a estrada refulgente que o astro imprimia sobra as águas
prateadas. Atrás de si, as vertentes até à cidade mergulhavam na penumbra e, arrefecidas, cobriam-se de humidade. E foi assim que ele pôde, pela primeira
vez desde que regressara, sentir o cheiro penetrante das ervas húmidas da sua infância,
camuflado todo o tempo pelas exalações exóticas da cidade. Respirou esse cheiro
a saudade enquanto o sol mergulhava no oceano. Parecia-lhe uma bonita
despedida, se bem que triste.
O
sol ia fugindo para terras distantes, mas o reflexo doirado
cresceu ao mesmo passo, estendendo-se sobre a superfície salgada e
aproximando-se, acabando por atingir as arribas mesmo abaixo dos pés do
marinheiro. Parecia querer abrir caminho através da rocha e continuar
sempre,
para trás dele, que não pôde deixar de se virar.
A
silhueta da cidade, com o recorte do casario coroado pelos últimos
raios de sol que incidiam já somente sobre o topo dos telhados,
recortava-se no céu azul e violeta do ocaso. Parecia um templo
majestoso,
digno do maior dos deuses, com as suas cúpulas revestidas de ouro puro.
Vista
desta distância e à luz difusa do fim do dia, era exactamente igual à
memória
que ele guardava; em nada mudara. Uma sensação de paz maior do que
qualquer
amargura preencheu-o. Num instante, começou a compreender.
A sua cidade mudara
de figura, como ele próprio mudara, mas permanecia, na essência, o mesmo lugar, como
ele conservara a essência da sua alma para este reencontro, para lá de todas as
viagens e de todas as terras distantes que conhecera. Daquele lugar distante, o
seu espírito recuperou, numa silueta, a forma imortal que era a sua e de todas
as coisas do mundo. Um dia, decerto, a própria silhueta seria diferente, porque
as coisas aparentes nunca permanecem. E, no entanto, as aparências são a assinatura do Ser imperecível, que assim se veste para tornar manifesto o seu amor.
O marinheiro sentiu a sua consciência crescer, descendo da silhueta iluminada até englobar toda
a cidade, todas as ruas, todos os cheiros e cores, nativos e exóticos; sentiu
nela toda a sua vida e todo o mundo que percorrera; apertou-os num abraço de
unidade que explodiu até percorrer o universo inteiro. Viu novos universos a serem
criados e sentiu que um deles nascia dentro de si.
Permaneceu toda a noite deitado entre as ervas, respirando o
seu cheiro e, com o olhar fixo no firmamento estrelado, sentiu as estrelas
acenderem-se, uma a uma, dentro do seu peito, no espelho cristalino que era o mar
da sua alma.
Acabaria por voltar ao mar, aceitando sem reservas todas as formas que
assumiria a sua vida. Já não tornou a comandar os destinhos de um navio. O
regresso era o único objectivo de cada viagem.
Era um marinheiro com pátria.
Silvas da Mata
27/28 de Setembro de 1999