terça-feira, 20 de agosto de 2013

Snaga

Quando o pequeno Snaga acordou, ainda a noite era escura. Sentou-se na cama, embrulhado nos pesados cobertores que lhe faziam companhia nas longas noites de Inverno. Durante alguns minutos, deixou-se gozar a inebriante sensação do despertar do seu corpo... Gostava de dirigir toda a sua atenção a alguma das partes do corpo - as mãos, as pernas, o pescoço - como se fizesse um grande esforço para as mover e não conseguisse. Tentava aguentar o máximo de tempo e, depois, abria os olhos. Na escuridão amiga, manifestavam-se aos seus olhos multidões de duendezinhos e fogos-fátuos, voando pelo espaço em todas as direcções, numa dança mágica. Escondiam-se à medida que os seus olhos se habituavam à fraca luminosidade; as sombras do quarto iam ganhando forma, depois as silhuetas dos objectos, indefinidas, como se fossem manchas numa tela.

A janela tomou forma em primeiro lugar. Recortava-se, majestosa, na indefinição escura da parede, mesmo em frente à cabeceira do Snaga; por aí entrava a pálida luz das estrelas, miríades de estrelas, na mais harmoniosa desorganização que a Natureza alguma vez criara. As belas contas prateadas com que, para alguns, os espíritos das pessoas mortas se faziam lembrar às pessoas que ainda haviam de morrer. Snaga, por seu turno, gostava de pensar que todos aqueles pontos cintilantes no breu nocturno eram, antes, um rebanho de espíritos livres, de que Orion, o temível guerreiro, era o pastor. Espíritos libertos dos grilhões das sociedades e dos governos, livremente pastando por todo o céu; e Orion, a mais bela de todas as constelações, era o pai deles todos. Era a única constelação que o Snaga reconhecia, porque alguém lhe tinha ensinado - ele sempre preferia apreciar a majestade do firmamento no seu todo.

Lentamente emergindo do torpor de quem acaba de deixar, não sem saudade, as paragens oníricas, o Snaga deixou os seus pesados cobertores e embrulhou-se bem no roupão. Ainda perdido em ideias de espaço e liberdade, que o céu nocturno sempre inspirava na sua consciência emergente, inspirou o ar fresco e pleno de oxigénio dessa calma madrugada de Inverno e deixou o quarto. Chegando à cozinha, o contacto dos seus pés descalços com a superfície fria de pedra era mais um dos pequenos prazeres de todos os dias, que nunca dispensava. Fazia parte daquelas coisinhas que mantinham viva e genuína, no seu espírito, a sensação de presença.

Saiu para a rua, descalço e percorreu-a toda até acabarem as casas, sem encontrar ninguém, pois era cedo. Chegando ao fim, no cimo do monte, avistava-se uma parte da cidade. O rapaz sempre achara que faltava um pouco mais de verde àquele bairro. As casas, simplesmente, iam-se sucedendo umas às outras, paredes-meias, sem um arbusto, ou uma árvore, ou um canteiro que quebrasse a monotonia do tijolo ou da pintura. Na sua janela, pelo menos, ele tinha o seu jardim.

O seu jardim! Deliciado com a ideia de ter um jardim no beiral da janela, Snaga inspirou profundamente o ar da manhã e regressou a casa. Apetecia-lhe cantar, mas toda a gente dormia, ainda e o bom rapaz não gostava de incomodar as outras pessoas. Elas costumavam mostrar-se tão contrariadas com isso! Ele nunca o fazia por mal, era a sua alegria que transbordava - mas as pessoas crescidas não pareciam compreender a necessidade que sentia de partilhar com os outros essa alegria. Por isso, ele partilhava os seus hinos à vida, telepaticamente, com as criaturas que encontrava nessas curtas caminhadas, rua acima, rua abaixo; as ratazanas das sarjetas, os pardalitos que dormitavam nos telhados, as lagartixas e os mosquitos que zumbiam pelos ares e entravam nas casas pelas chaminés, de madrugada e picavam e acordavam as pessoas rezingonas!

Ao chegar a casa, o Snaga passou a porta que deixara aberta e logo foi encher o regador, para dar de beber às suas plantas. Tinha-as todas num vaso comprido: coberto de pequenas ervas sem nome, erguiam-se, uma de cada lado, a roseira e a pequena ameixeira. A roseira pegara de um ramito verde que o Snaga cortara, de uma roseira perto das fábricas, que secara quase por completo. Era, para ele, uma maravilha a forma como uma entidade totalmente diferente podia aparecer assim de uma parte de outra entidade... Seriam apenas um e o mesmo ser? Isso levava-o a pensar que talvez todos os seres fossem uma entidade única e, talvez, que seria possível unirem todas as suas consciências num único e eterno pensamento...

Aparte estas considerações, as duas plantas, assim como as ervas que com elas partilhavam o vaso, eram o seu "jardim" e o seu tesouro mais valioso. Dependiam de si para sobreviver e, por isso, ele, Snaga, era responsável por elas. Era, na sua opinião, aquilo que tornava o Homem um animal tão especial: esta espantosa, e singular, relação com a Natureza. Mais do que o destruidor, mais do que o domesticador do meio ambiente, o Homem era o único ser vivo do qual podia depender exclusivamente toda uma comunidade de outros seres vivos e que, ademais, tinha perfeita consciência desse facto. Isso fazia dele uma criatura cheia de responsabilidades e deveres. Ele sabia que, se quisesse ou por pura negligência, muitos seres podiam não sobreviver. Só a alegria da liberdade poderia aspirar a ser compensação suficiente para um tão grande fardo: ser imprescindível para outro ser. E o Snaga transbordava de alegria.

Enquanto regava e cantarolava baixinho, chegou o padeiro. Da sua carrinha, acenou ao Snaga, e atirou-lhe o saco do pão, sem chegar a parar e seguiu caminho, deixando um saco a cada porta. Quase imediatamente a seguir, mas menos apressado, chegou o leiteiro. Entusiasmado, o Snaga correu à cozinha e trouxe duas garrafas de vidro vazias, que o leiteiro aceitou em troca de duas outras, fechadas, cheias de leite e nata. Trocaram umas palavras já que o Snaga, que vivia na periferia, aproveitava para saber de que se falava na "vila", como era conhecido o centro. A meio da conversa, chegou o rapaz dos jornais, fazendo soar a campainha da bicicleta, lançando o jornal da manhã à soleira de cada porta. Que espantosa coincidência! E que conveniente... O Snaga maravilhava-se com estas coincidências, que o faziam pensar. Como ele cuidava das "suas" plantas, os adultos cuidavam de tantas coisas - cada um, fazendo a sua parte - para que a todos chegasse o leite, o pão, as notícias do dia, todos os dias.

Com o sol emergente clareando já o horizonte, voltou a entrar para preparar a refeição da manhã.

Era a sua refeição favorita. Costumava tomá-la sozinho, sentado ao fresco nas escadas da porta da rua, de roupão e pantufas, lendo o jornal enquanto tomava o seu café com leite e mastigava pão com queijo duro. Na leitura do jornal, preocupava-se especialmente com a notícias de terras longínquas; faziam-no imaginar o mundo todo, como se pudesse chegar a todas essas terras distantes.

Muitas dessas notícias eram sobre guerras; algumas eram sobre inundações e outros desastres naturais. Com tantas feridas no mundo, não se deixava dominar pelo pessimismo constante, depressivo, dos adultos resmungões do seu bairro periférico. Com a mesma convicção alegre com que seu amigo leiteiro lhe contava as histórias da vila, imaginava que todos aqueles conflitos longínquos estavam mesmo à beira de acabar, como as outras guerras da História, de que tinha ouvido falar, tinham acabado; e perguntava-se se aí, também, nessas terras distantes, os meninos todos liam o jornal, ao tomar a refeição da manhã e se liam notícias sobre jardinagem na terra do Snaga...



Silvas da Mata
Março de 1996

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

o marinheiro com pátria



O sol ia fugindo para terras distantes, mas o reflexo doirado cresceu ao mesmo passo, estendendo-se sobre a superfície salgada e aproximando-se, acabando por atingir as arribas mesmo abaixo dos pés do marinheiro. Parecia querer abrir caminho através da rocha e continuar sempre, para trás dele, que não pôde deixar de se virar.

A silhueta da cidade, com o recorte do casario coroado pelos últimos raios de sol que incidiam já somente sobre o topo dos telhados, recortava-se no céu azul e violeta do ocaso. Parecia um templo majestoso, digno do maior dos deuses, com as suas cúpulas revestidas de ouro puro. Vista desta distância e à luz difusa do fim do dia, era exactamente igual à memória que ele guardava; em nada mudara. Uma sensação de paz maior do que qualquer amargura preencheu-o. Num instante, começou a compreender.

Nesse mesmo instante, recomeçou a viver. O resto da sua vida conta-se em duas linhas; a vida que o levara até aí essa, sim, é uma história que merece ser contada.


I


Logo que soube sonhar e ter desejos, o seu maior desejo era conhecer o vasto mundo.

Desde criança, ouvia contar as histórias mais inacreditáveis acerca da imensidão de terras que existia para lá do oceano – cuja própria existência era, só por si, quase inimaginável. Se saía da cidade e subia os montes, a poente, mundo parecia acabar ali mesmo, nas escarpas onde a rocha se precipitava em enormes blocos sobre o mar exaltado; um farol guiava os navios, de noite, marcando, ao longe, o termo das terras familiares; o mar parecia interminável até à linha do horizonte.

De volta ao casario, corria para ver a chegada dos navios ao porto, maravilhando-se com os cheiros e as belas cores exóticas que deles saíam, ouvindo os relatos de velhos lobos-do-mar, sonhando com gentes estranhas e aves quiméricas, um céu diferente e uma vastidão de oceano para navegar.

Certo dia, sentiu ficar para trás a infância e pediu para embarcar num dos maiores navios mercantes que costumavam atracar no porto; pertencia a um armador muito rico, que tinha vários navios, alguns ainda maiores. Mas naquele navio disseram-lhe que não faltavam rapazes, muitos mais robustos do que ele, desejosos de abraçar a vida do mar. Tentou vários navios e obteve a mesma resposta.

Perante a invariável recusa, decidiu empregar-se no porto, como estivador, ajundando a carregar e a descarregar os navios. Aí nunca faltava o trabalho e o rapaz trabalhou esforçadamente enquanto esperava a sua oportunidade. Cresceu em robustez, transportando pesadas cargas, durante três anos, até que tornou a pedir um lugar no mesmo navio a que se dirigira primeiro mas continuava a perder para outros. Constrangido, voltou a procurar lugar noutros navios menores – mas em vão. Em todos os pequenos navios diziam-lhe que já tinham a tripulação completa; ninguém estava disposto a embarcar mais uma boca inexperiente na perigosa viagem para outros mares.

O pobre rapaz perdia a esperança de alguma vez ser aceite em qualquer embarcação. Jovem e sem rumo, continuou a trabalhar no porto e a admirar os navios ao longe. O desejo não morria no seu espírito, mais forte do que a indiferença alheia; sentia-o, agora, misturado com tristeza por não se encontrar a bordo, empurrado pelo vento em direcção ao vasto mundo de inumeráveis cores e aventuras. Tomou uma decisão: haveria de embarcar, nem que, para isso, tivesse que construir o seu próprio barco. Era esse o caminho certo: aparelharia, ele mesmo, o seu navio e partiria em busca da imensidão do mundo.

Empregou-se no estaleiro, onde também nunca havia falta de trabalho. Carregou tábuas, pregou pregos e esticou cordas, coseu velas e nunca se permitiu um momento de desatenção, até saber tudo sobre a maneira de construir navios. Mas aquilo que recebia no estaleiro mal lhe chegava para viver e, ao cabo de outros três anos, não estava mais perto de poder fazer-se ao largo no seu próprio navio. Mais uma vez, o desejo forte que o animava disse-lhe que não conseguiria mais nada trabalhando no estaleiro. Decidiu tornar-se lenhador e assumir por inteiro a tarefa que se propuzera.

Nesse tempo, a floresta ainda abundava, mas perto do mar estava toda requisitada para usufruto dos grandes armadores navais. Mais longe, contudo, cresciam velhas e imensas florestas de madeiras nobres que não eram propriedade de ninguém. Deixou, pela primeira vez, a sua cidade natal e porto de onde sonhava vir a fazer-se ao mar; viajou para as montanhas no interior, trabalhando durante um ano a abater árvores, outro a aparelhar tábuas. Findos dois anos, tinha reunido a madeira aparelhada que considerava suficiente para construir a sua embarcação. Ao todo, ficara com uma décima parte de toda a madeira que cortara e serrara, tendo vendido o resto para sobreviver e custear o transporte do restante até à cidade.

Regressou à cidade com a madeira que era, já, uma parte do seu sonho concretizada. Como mais nada lhe sobrara, perdeu ainda mais um ano a coser pano e enrolar corda, para que com a décima parte do seu trabalho dispuzesse de material em quantidade suficiente para iniciar os trabalhos no navio. Tal era o preço que o mundo lhe pedia, mas o seu sonho estava cada vez mais perto e o desejo movia-o com mais força do que todos os obstáculos. Nunca se distraia.

Findo o décimo ano desde que pedira, pela primeira vez, para embarcar no maior navio que fundeava no porto, tinha construído o melhor barco que o saber permitiria à altura, concebido com dimensões adequadas para que pudesse manobrá-lo sozinho. Exultante, sem esperar, fez-se ao mar, numa madrugada fria de Outono; vivera metade da sua vida somente do seu sonho; nada o prendia à terra que o vira nascer, ninguém veio para o ver partir.

Navegava para a saída do porto. Ao cruzar-se com outros navios que sulcavam as águas, trocava acenos com as tripulações – que, finalmente, lhe respondiam, como seus verdadeiros companheiros!

Aproveitou o refluxo da maré para deixar rapidamente a corrente do rio, que se perdia no mar em frente à cidade. Deixou-se levar pelos ventos suaves, que o afastavam da costa numa linha oblíqua. A ondulação manifestava-se com maior intensidade à medida que se afastava; era uma sensação nova que o enchia de prazer. Passou por bandos de gaivotas, ora flutuando nas águas, ora esvoaçando desorganizadamente sobre algum cardume; ocasionalmente, havia peixes que rompiam a superficie num voo de alguns metros em que se misturavam com as aves, para mergulharem logo a seguir, numa nuvem de espuma cintilante. Deleitado, saboreando desde tão cedo as maravilhas que antecipara durante anos, contemplava o mar próximo, que parecia ter ganho vida. Chegou a ver grupos de golfinhos, nadando rapidamente ao lado e à frente do seu veleiro. As maravinhas que observava falavam-lhe ainda das muitas mais que havia ainda por descobrir.

Os últimos raios de sol pareciam pintar nas águas escuras uma estrada de ouro resplandecente até à linha do horizonte, enchendo o rapaz de desejo de alcançar este limite e ir mais além. As primeiras estrelas que se acenderam nos céus crepusculares encontraram-no num estado de assombro solene perante o sonho que via realizar-se.


II


Terminado o primeiro dia da sua viagem, navegava do sabor do vento e das correntes marítimas. A madrugada veio lembrar-lhe de que perdera a direcção da costa. O mar e o céu confundiam-se na escuridão, dando-lhe a sensação de flutuar no vazio. Não tardou a aperceber-se de que, embora possuísse a melhor embarcação que a ciência de construção naval podia conceber, não sabia navegá-la. Aquela complexa e habilidosa construção de cordas, mastros e roldanas, a que se dedicara tantos anos, valia-lhe, agora, tanto como uma tábua à deriva. Nem sequer sabia nadar...

Nos dias que seguiram, não conseguiu avistar quaisquer sinais de terra. Passada a primeira semana, o mar perdera todos os seus atractivos, tornando-se monótono e uniforme em todas as direcções. Quando o vento soprou mais forte e a ondulação se levantou, o rapaz vomitou copiosamente. Na sexta noite, uma tempestade ergueu as águas negras num caos de vagas que se degladiavam furiosamente, erguendo para o céu cristas ameaçadoras, a que os ventos arrancavam cortinas de espuma, que salgavam a chuva que caía, grossa e desvairada, em todas as direcções. A visão deste combate insano, proporcionada por raios que as nuvens, enlouquecidas, cuspiam ininterruptamente sobre o mar, e que abalavam os ares com o rugido tenebroso dos trovões, encheu o espírito do rapaz de terror, de estar perdido ante o desenrolar deste sonho, feito hediondo pesadelo, que já não controlava. Agarrava-se com todas as suas forças ao navio que com ciência e labor construíra – tão bem concebido e construído que, mesmo desgovernado, constituia ainda a única segurança que podia sentir, face a uma natureza violenta e imprevisível.

O nascido desejo de reencontrar terra firme concretizou-se rapidamente, contra um recife que desfez por completo a melhor embarcação que podia enfrentar os mares profundos e o sonho de toda uma infância. Aos vinte anos, o rapaz perdia a sua inocência, num mar salgado de lágrimas convulsas.


III


A tempestade passou, mas a maré tornou a lançá-lo à corrente, sem vontade de sobreviver, agarrado por instinto aos destroços da sua embarcação. Do sol procurava agora refúgio sob as tábuas partidas, esforçando-se, apenas, por respirar e fugir à mordedura quente, enquanto a noite trazia o nevoeiro frio de que não havia fuga possível. A fome e a sede clamavam por satisfação e não eram satisfeitas. A febre e o delírio chegavam para pôr cobro ao esforço involuntário de sobrevivência. Quando o desfecho iminente parecia mergulhar a sua aventura no esquecimento, antes mesmo de começar, a salvação chegou pela mão da fortuna.

Uma embarcação vinda de outro porto fora desviada da sua rota pela mesma tempestade. Manobrava para evitar os recifes, quando o corpo foi avistado, flutuando entre os destroços. O rapaz foi içado para bordo e socorrido. Lentamente, recuperou as forças e ultrapassou, instintivamente, a angústia de tudo o que que atravessara. Deu-se conta de que se via na situação que sonhara em criança – embarcado, navegando pelo mar imenso num dos grandes navios que comerciavam por todos os portos do mundo.

Jovem, pôde pagar a sua dívida com duro trabalho, limpando os convés, fazendo pequenos recados. O comandante do navio interessou-se pelo náufrago – de início, por superstição, que aproxima as pessoas daqueles a quem a sorte parece ter tocado, mas com o passar dos dias passou a admirar a sua energia e entrega a qualquer tarefa, depois a sua familiaridade com os aspectos técnicos do navio e capacidade de, sob orientação, facilmente aprender a realizar qualquer trabalho com os marinheiros mais experientes.

A fidelidade deste fiou-se na mesma medida. O resto da tripulação seguia na direcção contrária, desmoralizada por tempo demais no mar, a que a tempestade os levara e obrigada, ainda, a severas restrições. Quando se instalou um motim a bordo, o rapaz defendeu o superior e foi posto a ferros. Conheceu o seu primeiro porto estrangeiro através de uma fenda no casco. Foi abandonado em terras desconhecidas, enquanto o capitão sofria pior sorte.

Vendo-se, de novo, em terra firme e no pleno controlo dos seus movimentos, pôde, finalmente, maravilhar-se com as estranhas características das paragens banhadas por mares distantes. Maravilhou-se com a cor de ferro da terra e o verde vivo das plantas, os sons das aves e de outros animais (que quase nunca avistava), os cheiros intensos porque diferentes de tudo o que alguma vez conhecera. Sendo ávido de novas experiências e sensações, entusiasta por natureza, depressa aprendeu a misturar-se com a gente desses lugares e a viver no seu meio, de acordo com as suas maneiras.

O apelo do mar imenso, no entanto, mantinha-se vivo; a fúria a que sobrevivera, assim como a sequência de acontecimentos que lhe sucederam, tinham-lhe trado o medo de experimentar novas aventuras a bordo dos navios mercantes; descobria que o gosto que tinha ganho pela sua nova vida se gastava, pouco a pouco, no desejo de não ficar no mesmo sítio e conhecer ainda outras paragens diferentes.

Mais experiente, desta vez, não teve problemas em embarcar num dos navios que regressavam às suas terras cheios de mercadorias. Abraçou a vida de marinheiro com a alegria que lhe vinha de um sonho, por momentos, quase perdido, que se realizava sem que desse por isso.

A alegria e a dedicação ao seu trabalho levou a que aprendesse, com o tempo, as artes de manobrar um navio. A confiança que conseguia conquistar a sucessivos comandantes valeu-lhe preciosos conhecimentos de astronomia e navegação científica, que só eram transmitidos a quem manifestava empenho e fidelidade sem reservas. Subiu rapidamente na vida do mar e conheceu todos os grandes portos comerciais do mundo; chegou a capitanear navios e até voltou a armar o seu próprio navio; mas nunca mais voltou à sua cidade natal. Cada nova cidade trazia-lhe mais novas descobertas, a que se entregava com voluntarismo, sem que qualquer delas, ou o seu conjunto, sossegassem a avidez de novidade que lhe inundava a alma. Nenhuma o prendia mais do que alguns meses; quando os navios eram carregados para uma nova viagem, ele já se imaginava longe.

Com o tempo acabou, por conhecer bem todos os climas, todas as estrelas, todas as plantas e animais e todas as cores, cheiros, sons e sabores de todas as terras e mares por onde passara. Até que, um dia fez uma descoberta que o abalou profundamente: em cada lugar havia qualquer coisa que observava mais demoradamente, que lhe merecia uma atenção especial; por vezes era uma linha de costa, por vezes eram as maneiras das pessoas, pormenores de construções, sombras, luz ou temperatura que lhe lembravam, como pequenos desenhos familiares num padrão exótico, a sua cidade natal. No dia em que disso teve consciência, nesse dia, os joelhos que nunca mais tinham vacilado perante a loucura do oceano cederam; e o marinheiro chorou de saudade. O calor das lágrimas que humedeciam as mãos ásperas de trabalho incendiou-lhe o espírito com um ardor maior do que todas as alegrias e todas as tristezas, todos os espantos e todas as novidades no seu conjunto. A vontade de regressar tornou-se de imediato uma certeza e cristalizou em decisão.

Na viagem de regresso, adoeceu com febres altas e delirou. Antes, o seu desejo vogava no futuro e abria-se à sua indefinição; agora, era a angústia de querer ver de novo o lugar que vira nascer todos os seus sonhos e desejos; a necessidade absoluta, que substituira a curiosidade desprendida,  queimava as suas forças a cada dia que passava. Pela segunda vez, após tantos anos, a sua vida dependia inteiramente de cuidados alheios. Na viagem de regresso, como na de partida, a sua salvação chegou no último momento. Depois de passar dias fechado no seu camarote, não se conteve mais e, com uma força de presença que o delírio só vinha reforçar, abandonou em plena noite o ambiente asséptico e saíu para o vento, salgado e cortante, que varria o convés e enchia o velame, impulsionando o navio na sua corrida. Subindo à proa, estacou, agarrando-se com as forças que lhe restavam à amurada, impassível ao vento e às ondas que agitavam o navio, de olhar fito no vazio escuro. Aguardou o seu destino, sentindo que o desfecho não tardaria mais do que a alvorada.

Concentrou toda a sua vida nesse momento, em que devolvia a alma ao lugar que lhe pertencia. Morte ou regresso, eram a mesma coisa.

A vida foi-lhe, mais uma vez, reenviada, com uma luz que cortou a noite. O farol marcava o começo das terras familiares, e era imenso o mar que ficava para trás... Inspirou fundo um último sopro salgado. A silhueta das arribas familiares recortava-se contra os primeiros alvores da manhã. Desceu ao convés, confirmou o imediato no comando das manobras de aportagem e regressou ao seu leito. A febre recedendo, dormiu um sono profundo e sereno durante dias. Findavam mais de vinte anos de viagens.


IV


Na manhã do sexto dia, desceu do navio à cidade: foi como se o coração lhe gelasse e se desfizesse em estilhaços cortantes. Como estava diferente! O porto crescera, havia muitos mais armazéns e maiores, todos apinhados de mercadorias e de gente. Dos velhos barracos onde trabalhara, nem vestígio. As pessoas andavam mais bem vestidas e ostentavam no rosto um semblante frio de indiferença. Os velhos marinheiros, que outrora eram assediados por curiosos e devoradores de histórias – que ele próprio, em tempos, fora – eram enfrentados com a mesma fria indiferença. A cidade vestira-se de todas as cores e cheiros exóticos que ele conhecera nas suas viagens – cores e cheiros a que se habituara e por que perdera, já, todo o interesse. Encontrou as mesmas ruas de outrora, mas irreconhecíveis. Das varandas e janelas pendiam plantas exóticas, e as lojas expunham produtos importados que os navios traziam de terras distantes. Havia, por todo o lado, gaiolas com aves de cores e vozes estranhas. O estrangeiro estampara-se em todos os rostos, em todos os gostos, nas maneiras e costumes da cidade. E ele, marinheiro regressado, descobria-se estrangeiro entre os seus.

A desilusão foi profunda. Enchera a alma de saudade, dedicara-se todo a este regresso que via, agora, impossível de realizar. Mergulhou numa depressão amarga. Passou a viver só no seu navio, despediu os companheiros e voltou a encontrar muitos deles nos antros de vício, onde se embebedava constantemente. Dissipou em sete meses tudo o que tinha ganho nas suas viagens e acabou por vender o navio a um mau preço, para pagar as dívidas da sua vida de vício. No oitavo mês de regressado, dormia na rua, rebuscando o lixo no porto por comida. Via os barcos partir e regressar, com total indiferença. Concentrava-se na amargura do seu sonho roubado.
 
Então, pela terceira vez, encaminhava-se para um desfecho ignóbil da sua vida. Saiu da cidade e subiu às arribas, crendo que só lhe restava vontade suficiente para a decisão de pôr fim à vida, no mesmo mar que, decerto, por distracção, não o levara vinte anos atrás.

Do alto dos montes, à beira das arribas, estendia-se o oceano salgado e o Sol descia sobre a bruma castanha no horizonte. Viu, de novo, como no primeiro entardecer que passara a bordo do seu primeiro navio, a estrada refulgente que o astro imprimia sobra as águas prateadas. Atrás de si, as vertentes até à cidade mergulhavam na penumbra e, arrefecidas, cobriam-se de humidade. E foi assim que ele pôde, pela primeira vez desde que regressara, sentir o cheiro penetrante das ervas húmidas da sua infância, camuflado todo o tempo pelas exalações exóticas da cidade. Respirou esse cheiro a saudade enquanto o sol mergulhava no oceano. Parecia-lhe uma bonita despedida, se bem que triste.

O sol ia fugindo para terras distantes, mas o reflexo doirado cresceu ao mesmo passo, estendendo-se sobre a superfície salgada e aproximando-se, acabando por atingir as arribas mesmo abaixo dos pés do marinheiro. Parecia querer abrir caminho através da rocha e continuar sempre, para trás dele, que não pôde deixar de se virar.

A silhueta da cidade, com o recorte do casario coroado pelos últimos raios de sol que incidiam já somente sobre o topo dos telhados, recortava-se no céu azul e violeta do ocaso. Parecia um templo majestoso, digno do maior dos deuses, com as suas cúpulas revestidas de ouro puro. Vista desta distância e à luz difusa do fim do dia, era exactamente igual à memória que ele guardava; em nada mudara. Uma sensação de paz maior do que qualquer amargura preencheu-o. Num instante, começou a compreender.
 
A sua cidade mudara de figura, como ele próprio mudara, mas permanecia, na essência, o mesmo lugar, como ele conservara a essência da sua alma para este reencontro, para lá de todas as viagens e de todas as terras distantes que conhecera. Daquele lugar distante, o seu espírito recuperou, numa silueta, a forma imortal que era a sua e de todas as coisas do mundo. Um dia, decerto, a própria silhueta seria diferente, porque as coisas aparentes nunca permanecem. E, no entanto, as aparências são a assinatura do Ser imperecível, que assim se veste para tornar manifesto o seu amor.

O marinheiro sentiu a sua consciência crescer, descendo da silhueta iluminada até englobar toda a cidade, todas as ruas, todos os cheiros e cores, nativos e exóticos; sentiu nela toda a sua vida e todo o mundo que percorrera; apertou-os num abraço de unidade que explodiu até percorrer o universo inteiro. Viu novos universos a serem criados e sentiu que um deles nascia dentro de si.

Permaneceu toda a noite deitado entre as ervas, respirando o seu cheiro e, com o olhar fixo no firmamento estrelado, sentiu as estrelas acenderem-se, uma a uma, dentro do seu peito, no espelho cristalino que era o mar da sua alma.

Acabaria por voltar ao mar, aceitando sem reservas todas as formas que assumiria a sua vida. Já não tornou a comandar os destinhos de um navio. O regresso era o único objectivo de cada viagem.

Era um marinheiro com pátria.


Silvas da Mata

27/28 de Setembro de 1999