terça-feira, 20 de agosto de 2013

Snaga

Quando o pequeno Snaga acordou, ainda a noite era escura. Sentou-se na cama, embrulhado nos pesados cobertores que lhe faziam companhia nas longas noites de Inverno. Durante alguns minutos, deixou-se gozar a inebriante sensação do despertar do seu corpo... Gostava de dirigir toda a sua atenção a alguma das partes do corpo - as mãos, as pernas, o pescoço - como se fizesse um grande esforço para as mover e não conseguisse. Tentava aguentar o máximo de tempo e, depois, abria os olhos. Na escuridão amiga, manifestavam-se aos seus olhos multidões de duendezinhos e fogos-fátuos, voando pelo espaço em todas as direcções, numa dança mágica. Escondiam-se à medida que os seus olhos se habituavam à fraca luminosidade; as sombras do quarto iam ganhando forma, depois as silhuetas dos objectos, indefinidas, como se fossem manchas numa tela.

A janela tomou forma em primeiro lugar. Recortava-se, majestosa, na indefinição escura da parede, mesmo em frente à cabeceira do Snaga; por aí entrava a pálida luz das estrelas, miríades de estrelas, na mais harmoniosa desorganização que a Natureza alguma vez criara. As belas contas prateadas com que, para alguns, os espíritos das pessoas mortas se faziam lembrar às pessoas que ainda haviam de morrer. Snaga, por seu turno, gostava de pensar que todos aqueles pontos cintilantes no breu nocturno eram, antes, um rebanho de espíritos livres, de que Orion, o temível guerreiro, era o pastor. Espíritos libertos dos grilhões das sociedades e dos governos, livremente pastando por todo o céu; e Orion, a mais bela de todas as constelações, era o pai deles todos. Era a única constelação que o Snaga reconhecia, porque alguém lhe tinha ensinado - ele sempre preferia apreciar a majestade do firmamento no seu todo.

Lentamente emergindo do torpor de quem acaba de deixar, não sem saudade, as paragens oníricas, o Snaga deixou os seus pesados cobertores e embrulhou-se bem no roupão. Ainda perdido em ideias de espaço e liberdade, que o céu nocturno sempre inspirava na sua consciência emergente, inspirou o ar fresco e pleno de oxigénio dessa calma madrugada de Inverno e deixou o quarto. Chegando à cozinha, o contacto dos seus pés descalços com a superfície fria de pedra era mais um dos pequenos prazeres de todos os dias, que nunca dispensava. Fazia parte daquelas coisinhas que mantinham viva e genuína, no seu espírito, a sensação de presença.

Saiu para a rua, descalço e percorreu-a toda até acabarem as casas, sem encontrar ninguém, pois era cedo. Chegando ao fim, no cimo do monte, avistava-se uma parte da cidade. O rapaz sempre achara que faltava um pouco mais de verde àquele bairro. As casas, simplesmente, iam-se sucedendo umas às outras, paredes-meias, sem um arbusto, ou uma árvore, ou um canteiro que quebrasse a monotonia do tijolo ou da pintura. Na sua janela, pelo menos, ele tinha o seu jardim.

O seu jardim! Deliciado com a ideia de ter um jardim no beiral da janela, Snaga inspirou profundamente o ar da manhã e regressou a casa. Apetecia-lhe cantar, mas toda a gente dormia, ainda e o bom rapaz não gostava de incomodar as outras pessoas. Elas costumavam mostrar-se tão contrariadas com isso! Ele nunca o fazia por mal, era a sua alegria que transbordava - mas as pessoas crescidas não pareciam compreender a necessidade que sentia de partilhar com os outros essa alegria. Por isso, ele partilhava os seus hinos à vida, telepaticamente, com as criaturas que encontrava nessas curtas caminhadas, rua acima, rua abaixo; as ratazanas das sarjetas, os pardalitos que dormitavam nos telhados, as lagartixas e os mosquitos que zumbiam pelos ares e entravam nas casas pelas chaminés, de madrugada e picavam e acordavam as pessoas rezingonas!

Ao chegar a casa, o Snaga passou a porta que deixara aberta e logo foi encher o regador, para dar de beber às suas plantas. Tinha-as todas num vaso comprido: coberto de pequenas ervas sem nome, erguiam-se, uma de cada lado, a roseira e a pequena ameixeira. A roseira pegara de um ramito verde que o Snaga cortara, de uma roseira perto das fábricas, que secara quase por completo. Era, para ele, uma maravilha a forma como uma entidade totalmente diferente podia aparecer assim de uma parte de outra entidade... Seriam apenas um e o mesmo ser? Isso levava-o a pensar que talvez todos os seres fossem uma entidade única e, talvez, que seria possível unirem todas as suas consciências num único e eterno pensamento...

Aparte estas considerações, as duas plantas, assim como as ervas que com elas partilhavam o vaso, eram o seu "jardim" e o seu tesouro mais valioso. Dependiam de si para sobreviver e, por isso, ele, Snaga, era responsável por elas. Era, na sua opinião, aquilo que tornava o Homem um animal tão especial: esta espantosa, e singular, relação com a Natureza. Mais do que o destruidor, mais do que o domesticador do meio ambiente, o Homem era o único ser vivo do qual podia depender exclusivamente toda uma comunidade de outros seres vivos e que, ademais, tinha perfeita consciência desse facto. Isso fazia dele uma criatura cheia de responsabilidades e deveres. Ele sabia que, se quisesse ou por pura negligência, muitos seres podiam não sobreviver. Só a alegria da liberdade poderia aspirar a ser compensação suficiente para um tão grande fardo: ser imprescindível para outro ser. E o Snaga transbordava de alegria.

Enquanto regava e cantarolava baixinho, chegou o padeiro. Da sua carrinha, acenou ao Snaga, e atirou-lhe o saco do pão, sem chegar a parar e seguiu caminho, deixando um saco a cada porta. Quase imediatamente a seguir, mas menos apressado, chegou o leiteiro. Entusiasmado, o Snaga correu à cozinha e trouxe duas garrafas de vidro vazias, que o leiteiro aceitou em troca de duas outras, fechadas, cheias de leite e nata. Trocaram umas palavras já que o Snaga, que vivia na periferia, aproveitava para saber de que se falava na "vila", como era conhecido o centro. A meio da conversa, chegou o rapaz dos jornais, fazendo soar a campainha da bicicleta, lançando o jornal da manhã à soleira de cada porta. Que espantosa coincidência! E que conveniente... O Snaga maravilhava-se com estas coincidências, que o faziam pensar. Como ele cuidava das "suas" plantas, os adultos cuidavam de tantas coisas - cada um, fazendo a sua parte - para que a todos chegasse o leite, o pão, as notícias do dia, todos os dias.

Com o sol emergente clareando já o horizonte, voltou a entrar para preparar a refeição da manhã.

Era a sua refeição favorita. Costumava tomá-la sozinho, sentado ao fresco nas escadas da porta da rua, de roupão e pantufas, lendo o jornal enquanto tomava o seu café com leite e mastigava pão com queijo duro. Na leitura do jornal, preocupava-se especialmente com a notícias de terras longínquas; faziam-no imaginar o mundo todo, como se pudesse chegar a todas essas terras distantes.

Muitas dessas notícias eram sobre guerras; algumas eram sobre inundações e outros desastres naturais. Com tantas feridas no mundo, não se deixava dominar pelo pessimismo constante, depressivo, dos adultos resmungões do seu bairro periférico. Com a mesma convicção alegre com que seu amigo leiteiro lhe contava as histórias da vila, imaginava que todos aqueles conflitos longínquos estavam mesmo à beira de acabar, como as outras guerras da História, de que tinha ouvido falar, tinham acabado; e perguntava-se se aí, também, nessas terras distantes, os meninos todos liam o jornal, ao tomar a refeição da manhã e se liam notícias sobre jardinagem na terra do Snaga...



Silvas da Mata
Março de 1996

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