quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A Máquina do Mundo

"Vês aqui a grande Máquina do Mundo,
etérea e elemental, que fabricada
assim foi do Saber, alto e profundo,
que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
globo e sua superfície tão limada,
é Deus: mas o que é Deus ninguém o entende,
que a tanto o engenho humano não se estende"

Camões, "Os Lusíadas", canto X, estrofe 80.

Nesta estrofe e nas seguintes, o Gama contempla o mundo "como Deus o vê"; assim o sugeriu o Paulo Borges, hoje, numa conversa não sobre Camões, mas sobre o "super-Camões", Fernando Pessoa. "como Deus o vê" - sugestão fecunda! Entre as muitas leituras que podemos fazer destes versos, aponta para a identificação da consciência com o "observador", uma expressão muito corrente, nomeadamente, nalgum pensamento oriental, seja o budismo, por exemplo, ou o advaita vedanta.

Onde pára o Gama na visão da Máquina do Mundo? Na identificação com o mundo, na sua diversidade de fenómenos? Onde pára Camões? Não estará a sugerir que, ao ver o mundo "como Deus o vê", o Gama é, efectivamente, esse Deus, esquecido de quem é?

Antes (estrofe 77) Camões sugere, sobre a "máquina":

(...) um mesmo rosto
Por toda a parte tem, e em toda a parte
Começa e acaba (...)

A visão do Gama pode ser, então, uma descrição da identificação da consciência com esse todo? Ou, somente, uma contemplação, exterior, da totalidade? Esta última hipótese é, de tal modo, paradoxal, que não devemos admitir ter sido a do poeta.

Esse Deus, que o engenho humano não entende, é, simultaneamente, sujeito e objecto do entendimento: não se pode "entender" a si próprio, não se pode "ver" a si próprio, pois no acto de "se ver" ou de "se pensar", a sua consciência torna-se dual, separa-se o sujeito e o objecto e o conhecimento torna-se mediado (e alterado) pelos pensamentos, memórias, sentidos.