quinta-feira, 19 de abril de 2018

O Eléctrico (1998)


Nem dei pela paragem quando por ela passei, preparado para uma penosa subida a pé. Os carris que rasgavam o asfalto pouco mais eram do que um elemento pitoresco do pavimento, como a calçada branca dos passeios, ou a calçada negra que subsistia ainda nalgumas ruas – certamente por negligência das autoridades a quem competia substituí-las, para maior conforto dos modernos automobilistas.

«Ding! Ding!»

Obriguei-me a olhar para trás. Sem pressa, o eléctrico aproximava-se, abrandava, parava. Alheio à azáfama que tomou conta da cidade, ostentava ainda o sorriso indolente da preguiça de outros tempos. Devolvi-lhe o sorriso, e sorrindo volvi ao meu caminho, seguro de que chegaria mais depressa ao meu destino confiando, nas próprias pernas.

O sol de um princípio de tarde de fim de Inverno é, para mais, algo de absolutamente insubstituível nestas paragens, convidando a sentir o regresso anunciado dos dias quentes em que a vida deve ser vivida ao ritmo da sesta mediterrânica.

«Ding! Ding!»

Como que para comprovar a minha razão, o eléctrico só tornou a alcançar-me já perto da paragem seguinte. Não podia ser um meio de transporte colectivo; era uma jumenta teimosa, pesadona, cuja maior realização consiste em atrasar os passageiros e fazê-los passar mais tempo no caminho, que é uma coisa incómoda (aliás, como todos os meios – melhor seria que apenas existissem os fins).

E incomodado com a ideia de que estes são meros instantes, e de que a vida toda é um caminho entre o instante em que nascemos e o instante em que morremos, resolvi subir para o eléctrico, por vingança, e obrigá-lo a carregar o meu peso durante o resto da subida.

A mastronça carruagem vinha cheia, mas largou grande parte da carga nessa mesma paragem, de modo que a minha satisfação vingativa estava condenada a não ter efeito. Entrei só eu e uma velhinha – uma amostra suficiente do universo dos passageiros do eléctrico: velhos e jovens, os que ainda não têm pressa e os que deixaram de a ter.

A mula casmurra fez questão de estalar todas as articulações antes de retomar a marcha, sacudindo-se sem elegância por essas ruas acima. Como tinham ficado por saír exactamente tantas pessoas quantos lugares sentados havia, tomei o meu lugar do costume, de pé junto à porta da rectaguarda, como se fosse saír na próxima, o que não era o caso. Um hábito irritante, daqueles que levam as pessoas a preferir atravessar várias carruagens de um comboio em andamento, para se apearem no local mais conveniente da estação onde pretendem saír, que é geralmente o mais próximo da saída desta…

– Obrigada. O jovem é um cavalheiro.

A velhinha agradecia o lugar que lhe tinha sido cedido. O seu interlocutor murmurou um inaudível «não tem de quê». Uma senhora de meia idade comentou o facto de os jovens de hoje em dia serem «uns grandes malcriadões», não deixando de louvar «aquele» jovem pela diferença. Este, atrapalhado, não sabia o que responder. Outra senhora, cuja saia tinha um padrão semelhante ao do assento que ocupava, opinava que a culpa era dos pais que mimavam os filhos, tornando-os alheios às necessidades dos outros. Um padre referiu a falta de valores espirituais de pais e de filhos, lembrando as armadilhas do materialismo, da sociedade de consumo que, criando necessidades artificiais, que podem ser facilmente satisfeitas, levam os homens a esquecer a verdadeira necessidade de estar de bem consigo mesmo, com Deus e com o próximo. O senhor que ocupava o banco atrás da velhinha acrescentou que a mania do dinheiro tinha dado cabo do futebol, que já não havia amor à camisola, que aquilo era tudo uma cambada de malandros atrás de quem tivesse mais dinheiro para distribuir.

A senhora de meia-idade, tão fleumática quanto avantajada, arrumada com dificuldade no seu assento, tornou ao comportamento dos jovens nos transportes públicos. Às vezes, dizia, até pareciam uns avestruzes, com a vista escondida num livro ou no vidro da janela, fingindo não reparar, mas com a cara tão vermelha que não enganavam ninguém. Um velho calvo de bengala de plástico, a imitar bambú, depois de ter dito que o pai fizera parte do corpo expedicionário e que o filho combatera na Guiné, e que ambos tinham ficado estropiados no cumprimento do dever pátrio, e que ele próprio tinha estragado os ossos a trabalhar para bem da nação, concluiu que o rapaz apenas cumprira a sua obrigação.

O jovem cujo acto de cortesia dera origem ao debate, tomado de súbita confiança e alguma indignação, confessou que era a primeira vez que o fazia, e que não fora qualquer sentido do dever que o motivara, mas apenas o facto de que, em todas as ocasiões anteriores, se deixara ficar no seu lugar, esperando que ninguém reparasse, sabendo proceder mal e sentindo-se infeliz por isso, ou sabendo-o «porque» se sentia infeliz com isso mas, não-obstante, temendo ver a sua oferta recusada com maus modos por alguém a quem tivesse ferido o orgulho, a dignidade que restava depois da sociedade lhe ter deixado de reconhecer utilidade.

A confissão conseguiu comover muitos passageiros, pois mesmo os que se escusavam de participar não perdiam uma palavra do que se discutia; pelo menos, para esquecer a marcha demorada do eléctrico.

O velho da bengala, sentindo-se publicamente desafiado, ia ripostar, mas a senhora gorda foi mais lesta em atestar que este rapaz, afinal, não era melhor do que os outros, uma vez que ele próprio admitia só se ter mexido para apaziguar a consciência – um acto de egoísmo, portanto. Em defesa dele acorreu a senhora da saia amarelenta, lembrando que Deus escreve direito por linhas tortas, e que mais valia dar lugar à velhinha por egoísmo, do que deixar de o fazer por timidez. Outra senhora, que ainda não tinha dado a sua sentença, disse que se o jovem não tivesse cedido o lugar outro qualquer o faria; para de imediato se calar e exibir ela própria o rubor do embaraço, certamente duvidando da sua hipotética conduta. O padre, então, disse que era importante não esquecer que o rapaz se teria sentido infeliz caso tivesse optado por nada fazer; que por a consciência ter a capacidade de nos fazer sentir infelizes, é que nós sabemos se agimos mal ou se deixamos de praticar o Bem, pois estes são conceitos que apenas Deus conhece, e que escapam à compreensão humana. O rapaz quis saber se era pecado sentir-se feliz por ter cedido ao seu impulso egoísta. O padre regozijou-se por ele se sentir feliz, e comparou a sua felicidade à alegria que os seus fiéis sentem quando, sinceramente arrependidos, deixam o confessionário após a absolvição ritual dos seus pecados. Se não sentisse que o seu gesto fora bom, também não se sentiria feliz, assim como um fiel que não se sentisse arrependido, não se sentiria perdoado.

Estar de bem com Deus, com o próximo e, sobretudo, consigo próprio era, portanto, condição obrigatória para se ser feliz. E o maior obstáculo era, pelos vistos, o pecado por omissão. Aquele que nos atormenta na altura mas que esquecemos depressa, de que não nos lembramos de pedir absolvição e que, por isso, era causa de sofrimento difícil de detectar. No fundo, sofremos menos com as coisas que fazemos, do que com as coisas que deixamos de fazer.

Muitos passageiros tinham deixado chegar as lágrimas aos olhos. Alguns fungavam convictamente. A senhora sentenciosa disse que não se lembrava de alguma vez ter ouvido frases tão bonitas durante uma missa. Seguiu-se um silêncio confrangedor, pois todos esperavam uma resposta do padre, que tardava. A própria velhinha acabou por falar, dizendo que após sessenta e tal anos de ir à missa todos os Domingos, acabara por se acostumar ao ritual, que repetia por automatismo, e confessava lembrar-se hoje de pouca coisa do seu significado, que aprendera no catecismo, além de que era um pouco dura de ouvido e perdia sempre boa parte das homilias.

Subitamente, a senhora gorda anunciou que tinha uma confissão a fazer a todos, estranhos que ela nunca vira na vida (ou se calhar até via frequentemente, no eléctrico, mas não se recordava). Confessou que, todos os dias, passava por um ceguinho que pedia esmola. Não tinha muito para dar, e por vaidade receava que as pessoas vissem uma esmola pequena como vinda de uma falsa caridosa, que dá uns tostões que não lhe fazem falta nenhuma, para apaziguar a consciência sem grande sacrifício. Certo dia decidiu dar ao ceguinho os cem escudos que tinha na carteira. Mas, quando o ia fazer, uma senhora à sua frente deixou uma nota no chapéu. Ouviu comentários de espanto e admiração, viu a satisfação com que a senhora se afastou, ufana, nada fazendo para disfarçar a sua vaidade, e continuou a andar com a moeda na mão, incapaz de a deixar cair na caneca do ceguinho. O incidente atormentou-a o dia todo. Apercebeu-se da sua própria vaidade e achou a vaidade da outra infinitamente menos grave, por através dela o ceguinho ver a sua condição amenizada. A única solução que via para matar o sofrimento que a tomara, era vencer as reservas que não compreendia. Parecia-lhe motivo fraco para um acto de caridade, mas certo era que o ceguinho não daria pela diferença; no dia seguinte, levou uma moeda destinada a esse fim. Mas dessa vez não o encontrou, e não o tornaria a ver. O assunto acabou por ser esquecido até que, no outro dia, um pobre lhe pediu esmola na rua.

– Só tinha comigo dez escudos, mas dei-os com sentimento. Não consigo descrever a alegria que senti por tão pouca coisa.
Inesperadamente, o guarda-freios travou o eléctrico, sacudindo todos os passageiros do transe a que a história os levara. 
Tinha acabado de passar por uma paragem vazia, mas ninguém tocara a campainha, pedindo para saír.

– Também eu nunca fiz isto antes – desculpou-se ele. – Fazia-me sentir um pouco mal, mas sempre havia as regras da companhia, para calar a voz da consciência. Agora parece-me que certas regras foram feitas mesmo para serem quebradas… Assim como assim, já ninguém espera que o eléctrico não esteja atrasado…

Passados alguns instantes, um sujeito passou a correr e entrou no eléctrico, agradecendo entusiasticamente ao guarda-freios, que retomou o andamento.

Saí na paragem seguinte, mas no eléctrico a discussão continuou, animada. Após a paragem, eu tinha ainda que atravessar uma avenida larga; conforme o meu costume, estando o semáforo vermelho para peões, fiquei à espera que um intervalo no fluxo de automóveis me permitisse atravessar numa corrida.

«Ding! Ding!»

O eléctrico também parara no cruzamento. De súbito, ocorreu-me de novo algo que sempre pensara em fazer, mas a que me acabava por recusar, pelas mais insignificantes razões. Nessa tarde, contudo, algo mudara. Apoiei-me no degrau traseiro do eléctrico e segurei-me à porta. Quando o sinal ficou verde, a mula vagarosa arrancou aos solavancos. Daquela posição, parecia menos mula e, sem dúvida, muito menos vagarosa. Atravessei toda a largura da avenida montado no seu dorso, e soltei-a quando me pareceu que essa manobra corria o risco de se tornar impossível, dada a velocidade crescente. Ao tocar o passeio, corri alguns metros, para não perder o equilíbrio. Afinal, a velha jumenta ainda tinha lume nas rodas… Atrás dela vinha uma longa fila de automóveis, que nada podiam fazer senão seguir o seu passo.

Sentia-me estupidamente feliz, e fiquei a ver o eléctrico afastar-se. «Ding! Ding!» – fez o guarda-freios. O eléctrico exibia-me um largo sorriso de cumplicidade. «Ding! Ding!», afastou-se ele, neurónio a neurónio, até se perder ao virar de uma esquina, para permanecer escondido e nunca aparecer a horas certas, ou quando achamos que precisamos dele, mas de certeza quando nos fartamos de esperar e decidimos pôr-nos a caminho pelo próprio pé, numa mágica tarde de fim de Inverno.

24 – 02 – 98

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