quinta-feira, 19 de abril de 2018

Aleph II (1999)

Aleph II

Parecia uma ideia como as outras – como as outras, flutuava por aí, sem propósito, rodopiando como a brisa ribeirinha de Lisboa entre os raminhos de escassas folhas amarelas dos lódãos. Estes, com os seus largos troncos cinzentos e grossas pernadas, que se sucediam ao longo da Rua Jau a intervalos regulares, entrelaçando-se por sobre o asfalto, evocavam em poucas décadas de crescimento o mesmo padrão imemorial que inspirou os construtores de abóbodas das antigas catedrais.

O cérebro diletante descia a rua, assobiando descontraidamente, cumprimentando as ideias que esvoaçavam com os pardais entre as árvores, espreitavam das sargetas entupidas com folhas mortas, fugiam em turbilhão dos automóveis ou se impunham com o barulho de um autocarro, de uma buzinadela num cruzamento ou de uma discussão à porta de um café. Acenava-lhes, como era seu hábito, num gesto que era um misto de saudação e despedida, de quem tem gosto em conhecê-las, mas não quer interromper a sua marcha para conversar um pouco, nem desviar o seu caminho para as acompanhar durante um bocado, nem deixar de cumprimentá-las todas por estar entretido com esta ou aquela.

Enquanto se detinha um instante para se encher do cheiro do ar fresco e húmido, aroma doce a folhas molhadas, dedidando uma especial atenção àquela ideia que todos os diletantes bem conhecem, que surge em qualquer lugar e situação e que nada diz, além de que a vida é bela e merece ser vivida; enquanto se conformava num esgar genuíno de devoção, que apenas se manifesta perante aqueles que têm o dom de conquistar simpatia por serem simpáticos e quererem agradar; a ideia apanhou-o desprevenido, aproveitando a corrente de uma inspiração profunda para inspirar o seu conteúdo tóxico no espírito do pobre cérebro diletante.

Pior do que um motim de hormonas, como uma formiga batedora chama as outras ideias todas, que se precipitam sobre o cérebro indefeso; incapaz de manter a ordem que determinava a cada uma o seu lugar no espaço e no tempo, este perde aos poucos a capacidade de distinguir. Enquanto as ideias todas se atropelam e misturam no seu espírito, um pensamento maior surge como uma chama que se acende na escuridão, que não é ausência de luz, mas uma sobrecarga da capacidade de ver; cresce e dilata o espírito que o envolve, rapidamente abarcando todo o cruzamento, toda a rua, avançando sobre as árvores, os prédios e as pessoas como uma onda de choque, um halo de luz, que deixa de ser chama para passar a ser fogueira e depois estrela; e à velocidade do pensamento a luz percorre o universo todo num único instante, ligando cada átomo a todos os outros como uma engrenagem, e de roda para roda todas as ideias são tomadas pelo movimento e desfilam sozinhas, e rodam em conjunto mas em todas as direcções e sentidos, soltando ecos de todos os timbres e lampejos de todas as cores, até tudo terminar numa explosão de luz, a que se segue um momento eterno de noite e silêncio.

Viste estrelas nascerem e arderem até se consumirem, explodirem e espalharem poeira  de que se formam novas estrelas. Viste planetas sem fogo interior, arrefecendo continuamente e endurecendo a sua substância, serem engolidos por aquelas, ou viverem uma existência emprestada seguindo-as através do espaço. Viste seres que nascem e morrem graças ao calor das estrelas e ao frio dos planetas. E viste seres que pensam e sentem, que riem e se alegram com a Verdade, choram e sofrem com a Mentira, e estes seres também nascem e morrem, mas o seu pensamento vive somente, e é eterno, e existe no conjunto de todas as coisas.

No cruzamento com a Av. Dos Lusíadas, Camões mostrou-te a Máquina do Mundo. Viste o Aleph de Borges no degrau do passeio, a Terra Prometida, Sião celestial, o paraíso prometido dos sonhadores medievais, e ao voltar a ti… Recordavas um frémito, um instante de descontrolo motor, imediatamente abafado pelo instinto. A sensação de ter sido ultrapassado por uma ideia, a angústia do ter sabido e voltar a ser ignorante. Uma sede insaciável apodera-se de ti, apagando a tua inocência, e gravando-te na carne, com lápis de fel e vinagre, uma dor eterna de insatisfação.

O chamamento não é optativo. Sumiu-se a visão, mas deixou um vazio inimpregnável e dilacerante em seu lugar, um anelo por esse Lugar, essa Pátria, essa Ilha oculta, para lá das brumas… Num lodaçal de lamas escuras e traiçoeiras, cujo fedor a podridão te sufoca e cujas águas sujas jamais saciarão a tua sede, não existem caminhos, mas só andando tens esperança de ultrapassar a confusão. Espírito errante, nenhum outro consolo te chegará nesta vida. Sabes agora o que existe para lá do fim, mas a tua recusa de tomar um rumo é mais forte do que nunca. Nenhum caminho, apenas a saudade do Fim. Quando, exausto, te deixares caír na lama, e esta começar a expulsar-te o ar poluído das fauces, talvez então sintas o cheiro doce que anuncia o fim da fermentação…

Novembro de 1998, Julho de 1999

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