quinta-feira, 19 de abril de 2018

O Eléctrico (1998)


Nem dei pela paragem quando por ela passei, preparado para uma penosa subida a pé. Os carris que rasgavam o asfalto pouco mais eram do que um elemento pitoresco do pavimento, como a calçada branca dos passeios, ou a calçada negra que subsistia ainda nalgumas ruas – certamente por negligência das autoridades a quem competia substituí-las, para maior conforto dos modernos automobilistas.

«Ding! Ding!»

Obriguei-me a olhar para trás. Sem pressa, o eléctrico aproximava-se, abrandava, parava. Alheio à azáfama que tomou conta da cidade, ostentava ainda o sorriso indolente da preguiça de outros tempos. Devolvi-lhe o sorriso, e sorrindo volvi ao meu caminho, seguro de que chegaria mais depressa ao meu destino confiando, nas próprias pernas.

O sol de um princípio de tarde de fim de Inverno é, para mais, algo de absolutamente insubstituível nestas paragens, convidando a sentir o regresso anunciado dos dias quentes em que a vida deve ser vivida ao ritmo da sesta mediterrânica.

«Ding! Ding!»

Como que para comprovar a minha razão, o eléctrico só tornou a alcançar-me já perto da paragem seguinte. Não podia ser um meio de transporte colectivo; era uma jumenta teimosa, pesadona, cuja maior realização consiste em atrasar os passageiros e fazê-los passar mais tempo no caminho, que é uma coisa incómoda (aliás, como todos os meios – melhor seria que apenas existissem os fins).

E incomodado com a ideia de que estes são meros instantes, e de que a vida toda é um caminho entre o instante em que nascemos e o instante em que morremos, resolvi subir para o eléctrico, por vingança, e obrigá-lo a carregar o meu peso durante o resto da subida.

A mastronça carruagem vinha cheia, mas largou grande parte da carga nessa mesma paragem, de modo que a minha satisfação vingativa estava condenada a não ter efeito. Entrei só eu e uma velhinha – uma amostra suficiente do universo dos passageiros do eléctrico: velhos e jovens, os que ainda não têm pressa e os que deixaram de a ter.

A mula casmurra fez questão de estalar todas as articulações antes de retomar a marcha, sacudindo-se sem elegância por essas ruas acima. Como tinham ficado por saír exactamente tantas pessoas quantos lugares sentados havia, tomei o meu lugar do costume, de pé junto à porta da rectaguarda, como se fosse saír na próxima, o que não era o caso. Um hábito irritante, daqueles que levam as pessoas a preferir atravessar várias carruagens de um comboio em andamento, para se apearem no local mais conveniente da estação onde pretendem saír, que é geralmente o mais próximo da saída desta…

– Obrigada. O jovem é um cavalheiro.

A velhinha agradecia o lugar que lhe tinha sido cedido. O seu interlocutor murmurou um inaudível «não tem de quê». Uma senhora de meia idade comentou o facto de os jovens de hoje em dia serem «uns grandes malcriadões», não deixando de louvar «aquele» jovem pela diferença. Este, atrapalhado, não sabia o que responder. Outra senhora, cuja saia tinha um padrão semelhante ao do assento que ocupava, opinava que a culpa era dos pais que mimavam os filhos, tornando-os alheios às necessidades dos outros. Um padre referiu a falta de valores espirituais de pais e de filhos, lembrando as armadilhas do materialismo, da sociedade de consumo que, criando necessidades artificiais, que podem ser facilmente satisfeitas, levam os homens a esquecer a verdadeira necessidade de estar de bem consigo mesmo, com Deus e com o próximo. O senhor que ocupava o banco atrás da velhinha acrescentou que a mania do dinheiro tinha dado cabo do futebol, que já não havia amor à camisola, que aquilo era tudo uma cambada de malandros atrás de quem tivesse mais dinheiro para distribuir.

A senhora de meia-idade, tão fleumática quanto avantajada, arrumada com dificuldade no seu assento, tornou ao comportamento dos jovens nos transportes públicos. Às vezes, dizia, até pareciam uns avestruzes, com a vista escondida num livro ou no vidro da janela, fingindo não reparar, mas com a cara tão vermelha que não enganavam ninguém. Um velho calvo de bengala de plástico, a imitar bambú, depois de ter dito que o pai fizera parte do corpo expedicionário e que o filho combatera na Guiné, e que ambos tinham ficado estropiados no cumprimento do dever pátrio, e que ele próprio tinha estragado os ossos a trabalhar para bem da nação, concluiu que o rapaz apenas cumprira a sua obrigação.

O jovem cujo acto de cortesia dera origem ao debate, tomado de súbita confiança e alguma indignação, confessou que era a primeira vez que o fazia, e que não fora qualquer sentido do dever que o motivara, mas apenas o facto de que, em todas as ocasiões anteriores, se deixara ficar no seu lugar, esperando que ninguém reparasse, sabendo proceder mal e sentindo-se infeliz por isso, ou sabendo-o «porque» se sentia infeliz com isso mas, não-obstante, temendo ver a sua oferta recusada com maus modos por alguém a quem tivesse ferido o orgulho, a dignidade que restava depois da sociedade lhe ter deixado de reconhecer utilidade.

A confissão conseguiu comover muitos passageiros, pois mesmo os que se escusavam de participar não perdiam uma palavra do que se discutia; pelo menos, para esquecer a marcha demorada do eléctrico.

O velho da bengala, sentindo-se publicamente desafiado, ia ripostar, mas a senhora gorda foi mais lesta em atestar que este rapaz, afinal, não era melhor do que os outros, uma vez que ele próprio admitia só se ter mexido para apaziguar a consciência – um acto de egoísmo, portanto. Em defesa dele acorreu a senhora da saia amarelenta, lembrando que Deus escreve direito por linhas tortas, e que mais valia dar lugar à velhinha por egoísmo, do que deixar de o fazer por timidez. Outra senhora, que ainda não tinha dado a sua sentença, disse que se o jovem não tivesse cedido o lugar outro qualquer o faria; para de imediato se calar e exibir ela própria o rubor do embaraço, certamente duvidando da sua hipotética conduta. O padre, então, disse que era importante não esquecer que o rapaz se teria sentido infeliz caso tivesse optado por nada fazer; que por a consciência ter a capacidade de nos fazer sentir infelizes, é que nós sabemos se agimos mal ou se deixamos de praticar o Bem, pois estes são conceitos que apenas Deus conhece, e que escapam à compreensão humana. O rapaz quis saber se era pecado sentir-se feliz por ter cedido ao seu impulso egoísta. O padre regozijou-se por ele se sentir feliz, e comparou a sua felicidade à alegria que os seus fiéis sentem quando, sinceramente arrependidos, deixam o confessionário após a absolvição ritual dos seus pecados. Se não sentisse que o seu gesto fora bom, também não se sentiria feliz, assim como um fiel que não se sentisse arrependido, não se sentiria perdoado.

Estar de bem com Deus, com o próximo e, sobretudo, consigo próprio era, portanto, condição obrigatória para se ser feliz. E o maior obstáculo era, pelos vistos, o pecado por omissão. Aquele que nos atormenta na altura mas que esquecemos depressa, de que não nos lembramos de pedir absolvição e que, por isso, era causa de sofrimento difícil de detectar. No fundo, sofremos menos com as coisas que fazemos, do que com as coisas que deixamos de fazer.

Muitos passageiros tinham deixado chegar as lágrimas aos olhos. Alguns fungavam convictamente. A senhora sentenciosa disse que não se lembrava de alguma vez ter ouvido frases tão bonitas durante uma missa. Seguiu-se um silêncio confrangedor, pois todos esperavam uma resposta do padre, que tardava. A própria velhinha acabou por falar, dizendo que após sessenta e tal anos de ir à missa todos os Domingos, acabara por se acostumar ao ritual, que repetia por automatismo, e confessava lembrar-se hoje de pouca coisa do seu significado, que aprendera no catecismo, além de que era um pouco dura de ouvido e perdia sempre boa parte das homilias.

Subitamente, a senhora gorda anunciou que tinha uma confissão a fazer a todos, estranhos que ela nunca vira na vida (ou se calhar até via frequentemente, no eléctrico, mas não se recordava). Confessou que, todos os dias, passava por um ceguinho que pedia esmola. Não tinha muito para dar, e por vaidade receava que as pessoas vissem uma esmola pequena como vinda de uma falsa caridosa, que dá uns tostões que não lhe fazem falta nenhuma, para apaziguar a consciência sem grande sacrifício. Certo dia decidiu dar ao ceguinho os cem escudos que tinha na carteira. Mas, quando o ia fazer, uma senhora à sua frente deixou uma nota no chapéu. Ouviu comentários de espanto e admiração, viu a satisfação com que a senhora se afastou, ufana, nada fazendo para disfarçar a sua vaidade, e continuou a andar com a moeda na mão, incapaz de a deixar cair na caneca do ceguinho. O incidente atormentou-a o dia todo. Apercebeu-se da sua própria vaidade e achou a vaidade da outra infinitamente menos grave, por através dela o ceguinho ver a sua condição amenizada. A única solução que via para matar o sofrimento que a tomara, era vencer as reservas que não compreendia. Parecia-lhe motivo fraco para um acto de caridade, mas certo era que o ceguinho não daria pela diferença; no dia seguinte, levou uma moeda destinada a esse fim. Mas dessa vez não o encontrou, e não o tornaria a ver. O assunto acabou por ser esquecido até que, no outro dia, um pobre lhe pediu esmola na rua.

– Só tinha comigo dez escudos, mas dei-os com sentimento. Não consigo descrever a alegria que senti por tão pouca coisa.
Inesperadamente, o guarda-freios travou o eléctrico, sacudindo todos os passageiros do transe a que a história os levara. 
Tinha acabado de passar por uma paragem vazia, mas ninguém tocara a campainha, pedindo para saír.

– Também eu nunca fiz isto antes – desculpou-se ele. – Fazia-me sentir um pouco mal, mas sempre havia as regras da companhia, para calar a voz da consciência. Agora parece-me que certas regras foram feitas mesmo para serem quebradas… Assim como assim, já ninguém espera que o eléctrico não esteja atrasado…

Passados alguns instantes, um sujeito passou a correr e entrou no eléctrico, agradecendo entusiasticamente ao guarda-freios, que retomou o andamento.

Saí na paragem seguinte, mas no eléctrico a discussão continuou, animada. Após a paragem, eu tinha ainda que atravessar uma avenida larga; conforme o meu costume, estando o semáforo vermelho para peões, fiquei à espera que um intervalo no fluxo de automóveis me permitisse atravessar numa corrida.

«Ding! Ding!»

O eléctrico também parara no cruzamento. De súbito, ocorreu-me de novo algo que sempre pensara em fazer, mas a que me acabava por recusar, pelas mais insignificantes razões. Nessa tarde, contudo, algo mudara. Apoiei-me no degrau traseiro do eléctrico e segurei-me à porta. Quando o sinal ficou verde, a mula vagarosa arrancou aos solavancos. Daquela posição, parecia menos mula e, sem dúvida, muito menos vagarosa. Atravessei toda a largura da avenida montado no seu dorso, e soltei-a quando me pareceu que essa manobra corria o risco de se tornar impossível, dada a velocidade crescente. Ao tocar o passeio, corri alguns metros, para não perder o equilíbrio. Afinal, a velha jumenta ainda tinha lume nas rodas… Atrás dela vinha uma longa fila de automóveis, que nada podiam fazer senão seguir o seu passo.

Sentia-me estupidamente feliz, e fiquei a ver o eléctrico afastar-se. «Ding! Ding!» – fez o guarda-freios. O eléctrico exibia-me um largo sorriso de cumplicidade. «Ding! Ding!», afastou-se ele, neurónio a neurónio, até se perder ao virar de uma esquina, para permanecer escondido e nunca aparecer a horas certas, ou quando achamos que precisamos dele, mas de certeza quando nos fartamos de esperar e decidimos pôr-nos a caminho pelo próprio pé, numa mágica tarde de fim de Inverno.

24 – 02 – 98

Ser natural (1999)


À memória da minha irmã, Mariana.

O que é preciso é ser-se natural
e ser natural é ser igual à Natureza,
calmo e tempestuoso como o mar e o vento.
É sentir como quem sente e ao olhar
ver.
E sentir o que se vê por se ser passível de sentimento e porque se está próximo;
e pensar o que se sentiu porque andando se ganha distância, e se vê muitas coisas.
Ser natural é andar sempre e nunca ser o mesmo,
aqui gelo, além água e vapor; e guardar, como as montanhas,
memória de todas as chuvas e de todos os ventos...
E fundir tudo o que se vê, sente e pensa, num único pensamento
chamado Forma.
Amar a vida como a própria vida
e amar a morte porque se ama a vida.

9-7-99

Aleph II (1999)

Aleph II

Parecia uma ideia como as outras – como as outras, flutuava por aí, sem propósito, rodopiando como a brisa ribeirinha de Lisboa entre os raminhos de escassas folhas amarelas dos lódãos. Estes, com os seus largos troncos cinzentos e grossas pernadas, que se sucediam ao longo da Rua Jau a intervalos regulares, entrelaçando-se por sobre o asfalto, evocavam em poucas décadas de crescimento o mesmo padrão imemorial que inspirou os construtores de abóbodas das antigas catedrais.

O cérebro diletante descia a rua, assobiando descontraidamente, cumprimentando as ideias que esvoaçavam com os pardais entre as árvores, espreitavam das sargetas entupidas com folhas mortas, fugiam em turbilhão dos automóveis ou se impunham com o barulho de um autocarro, de uma buzinadela num cruzamento ou de uma discussão à porta de um café. Acenava-lhes, como era seu hábito, num gesto que era um misto de saudação e despedida, de quem tem gosto em conhecê-las, mas não quer interromper a sua marcha para conversar um pouco, nem desviar o seu caminho para as acompanhar durante um bocado, nem deixar de cumprimentá-las todas por estar entretido com esta ou aquela.

Enquanto se detinha um instante para se encher do cheiro do ar fresco e húmido, aroma doce a folhas molhadas, dedidando uma especial atenção àquela ideia que todos os diletantes bem conhecem, que surge em qualquer lugar e situação e que nada diz, além de que a vida é bela e merece ser vivida; enquanto se conformava num esgar genuíno de devoção, que apenas se manifesta perante aqueles que têm o dom de conquistar simpatia por serem simpáticos e quererem agradar; a ideia apanhou-o desprevenido, aproveitando a corrente de uma inspiração profunda para inspirar o seu conteúdo tóxico no espírito do pobre cérebro diletante.

Pior do que um motim de hormonas, como uma formiga batedora chama as outras ideias todas, que se precipitam sobre o cérebro indefeso; incapaz de manter a ordem que determinava a cada uma o seu lugar no espaço e no tempo, este perde aos poucos a capacidade de distinguir. Enquanto as ideias todas se atropelam e misturam no seu espírito, um pensamento maior surge como uma chama que se acende na escuridão, que não é ausência de luz, mas uma sobrecarga da capacidade de ver; cresce e dilata o espírito que o envolve, rapidamente abarcando todo o cruzamento, toda a rua, avançando sobre as árvores, os prédios e as pessoas como uma onda de choque, um halo de luz, que deixa de ser chama para passar a ser fogueira e depois estrela; e à velocidade do pensamento a luz percorre o universo todo num único instante, ligando cada átomo a todos os outros como uma engrenagem, e de roda para roda todas as ideias são tomadas pelo movimento e desfilam sozinhas, e rodam em conjunto mas em todas as direcções e sentidos, soltando ecos de todos os timbres e lampejos de todas as cores, até tudo terminar numa explosão de luz, a que se segue um momento eterno de noite e silêncio.

Viste estrelas nascerem e arderem até se consumirem, explodirem e espalharem poeira  de que se formam novas estrelas. Viste planetas sem fogo interior, arrefecendo continuamente e endurecendo a sua substância, serem engolidos por aquelas, ou viverem uma existência emprestada seguindo-as através do espaço. Viste seres que nascem e morrem graças ao calor das estrelas e ao frio dos planetas. E viste seres que pensam e sentem, que riem e se alegram com a Verdade, choram e sofrem com a Mentira, e estes seres também nascem e morrem, mas o seu pensamento vive somente, e é eterno, e existe no conjunto de todas as coisas.

No cruzamento com a Av. Dos Lusíadas, Camões mostrou-te a Máquina do Mundo. Viste o Aleph de Borges no degrau do passeio, a Terra Prometida, Sião celestial, o paraíso prometido dos sonhadores medievais, e ao voltar a ti… Recordavas um frémito, um instante de descontrolo motor, imediatamente abafado pelo instinto. A sensação de ter sido ultrapassado por uma ideia, a angústia do ter sabido e voltar a ser ignorante. Uma sede insaciável apodera-se de ti, apagando a tua inocência, e gravando-te na carne, com lápis de fel e vinagre, uma dor eterna de insatisfação.

O chamamento não é optativo. Sumiu-se a visão, mas deixou um vazio inimpregnável e dilacerante em seu lugar, um anelo por esse Lugar, essa Pátria, essa Ilha oculta, para lá das brumas… Num lodaçal de lamas escuras e traiçoeiras, cujo fedor a podridão te sufoca e cujas águas sujas jamais saciarão a tua sede, não existem caminhos, mas só andando tens esperança de ultrapassar a confusão. Espírito errante, nenhum outro consolo te chegará nesta vida. Sabes agora o que existe para lá do fim, mas a tua recusa de tomar um rumo é mais forte do que nunca. Nenhum caminho, apenas a saudade do Fim. Quando, exausto, te deixares caír na lama, e esta começar a expulsar-te o ar poluído das fauces, talvez então sintas o cheiro doce que anuncia o fim da fermentação…

Novembro de 1998, Julho de 1999

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Ciência e deslumbramento

Porque se "acredita", sem provas nem demonstração teórica, em milagres de santos e profetas, tal como em "siddhis" e outros portentos em que várias tradições religiosas sustentam a crença das pessoas? Não considero a religião, em si mesma, o tal veneno que tantos gostam de lhe chamar. Justificar a crença através de milagres é que me parece, isso sim, equivalente a traficar droga... Acreditar que alguém viveu 256 anos, sem provas, decorre estritamente da recusa do "crente" em ver a realidade tal como é.

Não domino o assunto, mas arrisco sugerir que, nesse "inconformismo" da crença em milagres, cruzam-se o medo e a criatividade, sendo uma outra expressão, talvez, do "instinto" humano de interagir com o mundo, mudando-o. São a mesma capacidade de pensar "outside the box", a curiosidade, o desejo de descobrir, independentemente de terem origem no sofrimento ou na alegria, na fuga ao que nos faz sofrer ou na adesão à nossa capacidade intrínseca de compreender e de interagir com o mundo. Num caso, a crença em milagres, em "realidades além da realidade" ou, para resumir, em tudo o que exige que se deixe de questionar, fazendo-nos estagnar, qual Adamastor, agarrado à pedra no meio da tempestade, transformado em pedra. No outro, o esforço de expandir os limites do conhecimento, guiados por um desejo de não transgredir as regras que acreditamos poderem permitir-nos dizer coisas verdadeiras, faz-nos progredir, ao encontro da realidade.
 

Muitos cientistas, provavelmente, rejeitariam o termo (porque não lhes interessam esses assuntos), mas a ciência também é uma filosofia monista. O conhecimento cresce por observação (céptica) do mundo, ligando novos dados e conceitos a um edifício em que tudo obedece às mesmas leis. O método científico é um meio de disciplinar o inconformismo, de tornar eficaz o esforço da imaginação, dirigindo-o à crítica da realidade que se conhece e não à crença em coisas inexplicáveis.
 
O cepticismo, longe de ser estéril, é a "rendição aos nossos limites": é o conflito de Ulisses que se obriga a não abandonar o seu veículo, nem seguindo as sereias, nem se misturando com os porcos. Tensão em que se rejeita, simultaneamente, o esbracejar profético dos arautos do maravilhoso, e os bezerros de ouro dos boçais. É a verticalidade no caminhar, vigilante e honesto, que permite, se for essa a nossa inclinação, encontrar o silêncio, sem ruído de quimeras, no deslumbramento com a imensidão do Cosmo.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A Máquina do Mundo

"Vês aqui a grande Máquina do Mundo,
etérea e elemental, que fabricada
assim foi do Saber, alto e profundo,
que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
globo e sua superfície tão limada,
é Deus: mas o que é Deus ninguém o entende,
que a tanto o engenho humano não se estende"

Camões, "Os Lusíadas", canto X, estrofe 80.

Nesta estrofe e nas seguintes, o Gama contempla o mundo "como Deus o vê"; assim o sugeriu o Paulo Borges, hoje, numa conversa não sobre Camões, mas sobre o "super-Camões", Fernando Pessoa. "como Deus o vê" - sugestão fecunda! Entre as muitas leituras que podemos fazer destes versos, aponta para a identificação da consciência com o "observador", uma expressão muito corrente, nomeadamente, nalgum pensamento oriental, seja o budismo, por exemplo, ou o advaita vedanta.

Onde pára o Gama na visão da Máquina do Mundo? Na identificação com o mundo, na sua diversidade de fenómenos? Onde pára Camões? Não estará a sugerir que, ao ver o mundo "como Deus o vê", o Gama é, efectivamente, esse Deus, esquecido de quem é?

Antes (estrofe 77) Camões sugere, sobre a "máquina":

(...) um mesmo rosto
Por toda a parte tem, e em toda a parte
Começa e acaba (...)

A visão do Gama pode ser, então, uma descrição da identificação da consciência com esse todo? Ou, somente, uma contemplação, exterior, da totalidade? Esta última hipótese é, de tal modo, paradoxal, que não devemos admitir ter sido a do poeta.

Esse Deus, que o engenho humano não entende, é, simultaneamente, sujeito e objecto do entendimento: não se pode "entender" a si próprio, não se pode "ver" a si próprio, pois no acto de "se ver" ou de "se pensar", a sua consciência torna-se dual, separa-se o sujeito e o objecto e o conhecimento torna-se mediado (e alterado) pelos pensamentos, memórias, sentidos.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Orla Branca


O Infante

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Fernando Pessoa, "Mensagem".
Foto: Sun at Earth Terminator: http://drdave.co.uk/image/c6071964-56e3-4fc6-b15f-1cc8acc67e90


Esta é a "minha" orla branca: o contorno luminoso que surge no momento em que a luz, antes oculta para lá do horizonte, sob o "azul profundo", se manifesta e ilumina, no primeiro momento e antes de tudo o resto, apenas a linha que traduz a "terra inteira", a unidade de tudo - do planeta mas, também, de tudo o que o constitui e habita e, por extensão, de todo o universo.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Snaga

Quando o pequeno Snaga acordou, ainda a noite era escura. Sentou-se na cama, embrulhado nos pesados cobertores que lhe faziam companhia nas longas noites de Inverno. Durante alguns minutos, deixou-se gozar a inebriante sensação do despertar do seu corpo... Gostava de dirigir toda a sua atenção a alguma das partes do corpo - as mãos, as pernas, o pescoço - como se fizesse um grande esforço para as mover e não conseguisse. Tentava aguentar o máximo de tempo e, depois, abria os olhos. Na escuridão amiga, manifestavam-se aos seus olhos multidões de duendezinhos e fogos-fátuos, voando pelo espaço em todas as direcções, numa dança mágica. Escondiam-se à medida que os seus olhos se habituavam à fraca luminosidade; as sombras do quarto iam ganhando forma, depois as silhuetas dos objectos, indefinidas, como se fossem manchas numa tela.

A janela tomou forma em primeiro lugar. Recortava-se, majestosa, na indefinição escura da parede, mesmo em frente à cabeceira do Snaga; por aí entrava a pálida luz das estrelas, miríades de estrelas, na mais harmoniosa desorganização que a Natureza alguma vez criara. As belas contas prateadas com que, para alguns, os espíritos das pessoas mortas se faziam lembrar às pessoas que ainda haviam de morrer. Snaga, por seu turno, gostava de pensar que todos aqueles pontos cintilantes no breu nocturno eram, antes, um rebanho de espíritos livres, de que Orion, o temível guerreiro, era o pastor. Espíritos libertos dos grilhões das sociedades e dos governos, livremente pastando por todo o céu; e Orion, a mais bela de todas as constelações, era o pai deles todos. Era a única constelação que o Snaga reconhecia, porque alguém lhe tinha ensinado - ele sempre preferia apreciar a majestade do firmamento no seu todo.

Lentamente emergindo do torpor de quem acaba de deixar, não sem saudade, as paragens oníricas, o Snaga deixou os seus pesados cobertores e embrulhou-se bem no roupão. Ainda perdido em ideias de espaço e liberdade, que o céu nocturno sempre inspirava na sua consciência emergente, inspirou o ar fresco e pleno de oxigénio dessa calma madrugada de Inverno e deixou o quarto. Chegando à cozinha, o contacto dos seus pés descalços com a superfície fria de pedra era mais um dos pequenos prazeres de todos os dias, que nunca dispensava. Fazia parte daquelas coisinhas que mantinham viva e genuína, no seu espírito, a sensação de presença.

Saiu para a rua, descalço e percorreu-a toda até acabarem as casas, sem encontrar ninguém, pois era cedo. Chegando ao fim, no cimo do monte, avistava-se uma parte da cidade. O rapaz sempre achara que faltava um pouco mais de verde àquele bairro. As casas, simplesmente, iam-se sucedendo umas às outras, paredes-meias, sem um arbusto, ou uma árvore, ou um canteiro que quebrasse a monotonia do tijolo ou da pintura. Na sua janela, pelo menos, ele tinha o seu jardim.

O seu jardim! Deliciado com a ideia de ter um jardim no beiral da janela, Snaga inspirou profundamente o ar da manhã e regressou a casa. Apetecia-lhe cantar, mas toda a gente dormia, ainda e o bom rapaz não gostava de incomodar as outras pessoas. Elas costumavam mostrar-se tão contrariadas com isso! Ele nunca o fazia por mal, era a sua alegria que transbordava - mas as pessoas crescidas não pareciam compreender a necessidade que sentia de partilhar com os outros essa alegria. Por isso, ele partilhava os seus hinos à vida, telepaticamente, com as criaturas que encontrava nessas curtas caminhadas, rua acima, rua abaixo; as ratazanas das sarjetas, os pardalitos que dormitavam nos telhados, as lagartixas e os mosquitos que zumbiam pelos ares e entravam nas casas pelas chaminés, de madrugada e picavam e acordavam as pessoas rezingonas!

Ao chegar a casa, o Snaga passou a porta que deixara aberta e logo foi encher o regador, para dar de beber às suas plantas. Tinha-as todas num vaso comprido: coberto de pequenas ervas sem nome, erguiam-se, uma de cada lado, a roseira e a pequena ameixeira. A roseira pegara de um ramito verde que o Snaga cortara, de uma roseira perto das fábricas, que secara quase por completo. Era, para ele, uma maravilha a forma como uma entidade totalmente diferente podia aparecer assim de uma parte de outra entidade... Seriam apenas um e o mesmo ser? Isso levava-o a pensar que talvez todos os seres fossem uma entidade única e, talvez, que seria possível unirem todas as suas consciências num único e eterno pensamento...

Aparte estas considerações, as duas plantas, assim como as ervas que com elas partilhavam o vaso, eram o seu "jardim" e o seu tesouro mais valioso. Dependiam de si para sobreviver e, por isso, ele, Snaga, era responsável por elas. Era, na sua opinião, aquilo que tornava o Homem um animal tão especial: esta espantosa, e singular, relação com a Natureza. Mais do que o destruidor, mais do que o domesticador do meio ambiente, o Homem era o único ser vivo do qual podia depender exclusivamente toda uma comunidade de outros seres vivos e que, ademais, tinha perfeita consciência desse facto. Isso fazia dele uma criatura cheia de responsabilidades e deveres. Ele sabia que, se quisesse ou por pura negligência, muitos seres podiam não sobreviver. Só a alegria da liberdade poderia aspirar a ser compensação suficiente para um tão grande fardo: ser imprescindível para outro ser. E o Snaga transbordava de alegria.

Enquanto regava e cantarolava baixinho, chegou o padeiro. Da sua carrinha, acenou ao Snaga, e atirou-lhe o saco do pão, sem chegar a parar e seguiu caminho, deixando um saco a cada porta. Quase imediatamente a seguir, mas menos apressado, chegou o leiteiro. Entusiasmado, o Snaga correu à cozinha e trouxe duas garrafas de vidro vazias, que o leiteiro aceitou em troca de duas outras, fechadas, cheias de leite e nata. Trocaram umas palavras já que o Snaga, que vivia na periferia, aproveitava para saber de que se falava na "vila", como era conhecido o centro. A meio da conversa, chegou o rapaz dos jornais, fazendo soar a campainha da bicicleta, lançando o jornal da manhã à soleira de cada porta. Que espantosa coincidência! E que conveniente... O Snaga maravilhava-se com estas coincidências, que o faziam pensar. Como ele cuidava das "suas" plantas, os adultos cuidavam de tantas coisas - cada um, fazendo a sua parte - para que a todos chegasse o leite, o pão, as notícias do dia, todos os dias.

Com o sol emergente clareando já o horizonte, voltou a entrar para preparar a refeição da manhã.

Era a sua refeição favorita. Costumava tomá-la sozinho, sentado ao fresco nas escadas da porta da rua, de roupão e pantufas, lendo o jornal enquanto tomava o seu café com leite e mastigava pão com queijo duro. Na leitura do jornal, preocupava-se especialmente com a notícias de terras longínquas; faziam-no imaginar o mundo todo, como se pudesse chegar a todas essas terras distantes.

Muitas dessas notícias eram sobre guerras; algumas eram sobre inundações e outros desastres naturais. Com tantas feridas no mundo, não se deixava dominar pelo pessimismo constante, depressivo, dos adultos resmungões do seu bairro periférico. Com a mesma convicção alegre com que seu amigo leiteiro lhe contava as histórias da vila, imaginava que todos aqueles conflitos longínquos estavam mesmo à beira de acabar, como as outras guerras da História, de que tinha ouvido falar, tinham acabado; e perguntava-se se aí, também, nessas terras distantes, os meninos todos liam o jornal, ao tomar a refeição da manhã e se liam notícias sobre jardinagem na terra do Snaga...



Silvas da Mata
Março de 1996